Uma mulher jovem, bonita e muito assanhada, porém entediada com a vida monótona que levava, vagueava em Roma ao longo do rio Tevere (Tibre, em português). Corriam os primeiros anos do século XVI, e ela tinha entre 17 e 18 anos de idade. Chamava-se Margherita Luti, mas a apelidaram de Fornarina (Pequena Padeira), talvez por ser filha de um fornaio (padeiro); ou, então, pelo fato de não saber fazer mais nada, além de pão. Andava à beira do Tevere aparentemente buscando um homem que se interessasse por ela.
Provocante e sedutora, Fornarina foi abordada por um artista incomum: Raffaello Sanzio, gênio da pintura e da arquitetura no Renascimento Italiano, já admirado pela perfeição do desenho, harmonia de linhas e graciosa suavidade do colorido. Ele havia completado 31 anos de idade. Encantado com a jovem mulher, convidou-a para servir de modelo. Queria fazer seu retrato, prometendo pagá-la com dez beijos.
Mas Fornarina, percebendo o fascínio que exercia no desconhecido, pediu para ele tratar do assunto com seu esperto pai. A família morava na esquina da Via Santa Doroteia com a Via dela Scala, no Trastevere, antigo bairro de Roma, e a casa existe até hoje. O negócio acabou fechado a preço alto. O pai vendeu por cinquenta escudos de ouro o direito do pintor fazer a filha posar “como quisesse”.
Há versões contraditórias sobre como os dois se conheceram. Quem espalhou uma delas foi o renascentista Giorgio Vasari, pintor e arquiteto conhecido sobretudo pelas biografias de artistas. Ele escreveu que Raffaello viu a jovem mulher pela primeira vez quando tomava banho nua no Tevere. Diverge-se ainda sobre o nome de batismo de Fornarina.
Alguns dizem que se chamava Beatrice Ferrarese; outros, que era Margherita Gemiano. Ignora-se o que aconteceu com ela depois da morte de Raffaello, seis anos após se conhecerem. Alguns dizem que passou a ser apenas cortesã, a prostituta de luxo que não se vendia por qualquer dinheiro, e sim em troca de presentes caros e de bem-estar; outros, que entrou para um convento das irmãs beneditinas, onde permaneceu até seus últimos dias.
Infelizmente, o quadro La Fornarina não compõe a exposição sobre Raffaello aberta ao público no Centro Cultural da Fiesp, em São Paulo, no dia 19 de setembro. Entretanto, os visitantes encontrarão no lugar, até 16 de dezembro, três Madonas originais do artista, pintadas em madeira, que nunca estiveram no Brasil. Vieram de Roma, Modena e Nápoles. Melhor oportunidade para conhecer ao vivo sua obra, impossível.
Fornarina serviu de modelo para Raffaello a partir de 1514. Personificou na arte desde madonas e santas católicas até figuras mitológicas, obviamente pagãs. A obra mais célebre, porém, foi seu retrato, que hoje atrai legiões de turistas ao Palazzo Barberini, no centro histórico de Roma. Pintado entre 1518 e 1519, com a técnica do óleo sobre madeira, o quadro La Fornarina mede 85 por 60 centímetros. A modelo tem os seios à mostra e um véu que não esconde seu abdome. No alto do braço esquerdo, há um bracelete com a assinatura “Raphael Vrbinas”. Nem seria preciso dizer que Fornarina e o artista foram amantes.
Logo depois de encontrar Raffaello, a filha do padeiro mudou para o Palazzo Chigi, em Roma, onde o grande pintor morava sem pagar aluguel. Mas o artista apaixonado teve que entregar mais dinheiro ao pai dela. O homem arrancou-lhe 3.000 escudos de ouro. Raffaello pagou sem reclamar. No palácio, levava vida principesca. Ganhava do dono rios de dinheiro para decorar o edifício, dispunha de criados para mandar e cavalos para andar. Localizado no centro histórico de Roma, o palácio pertencia ao banqueiro e mecenas Agostino Andrea Chigi, um dos homens mais ricos da época.
Construído entre 1508 e 1511, pelo arquiteto e pintor Baldassare Peruzzi, foi adquirido em 1580 pelo Cardeal Alessandro Farnese, neto do Papa Paulo III, recebendo o nome atual: Villa Farnesina. Ali o banqueiro Chigi recepcionou personalidades ilustres da época, artistas, poetas, cardeais, príncipes, o papa e a célebre cortesã Imperia, que poderia ter inspirado uma das “Três Graças”, óleo sobre painel da autoria de Raffaello, exposto agora no Museu Condé, do Château de Chantilly, na França.
Os biógrafos dizem que Fornarina traiu muitas vezes Raffaello. Teria se envolvido inclusive com o banqueiro Chigi, protetor do amante. O gênio da pintura descobria as infidelidades, rompia com ela e depois a perdoava. No palácio, o casal só não se desentendia à mesa. Ambos gostavam de comer bem. Sentavam-se para saborear pratos da Toscana, região natal do banqueiro Chigi, nascido em Siena. Raffaello sabia apreciá-los. Viveu na região entre 1504 e 1508, morando em Florença.
Ou, então, para saborear alguma receita da região de Marche, terra natal de Raffaello. Ele nasceu em Urbino, em uma família de artistas — o pai, Giovanni Santi, foi pintor e poeta na cidade. A região tem uma culinária aparentada com a das vizinhas Emília-Romanha, Toscana e Úmbria mas também oferece especialidades particulares. Uma delas se chama olive ripiene all’ascolana.
São azeitonas em conserva, da variedade ascolana (da província de Ascoli Piceno), carnudas e tenras, descaroçadas e recheadas com uma mistura de carnes, empanadas e fritas em azeite muito quente. Raffaello pode não ter conhecido a receita atual, mas vale a homenagem. Afinal, além de originário da Marche, apreciaria azeitonas.
Enfim, tudo o que se fala da amante do gênio da pintura e da sua relação com aquela jovem mulher é discutível. Certo, mesmo, estava o romancista francês Gustavo Flaubert. Em seu Dicionário das Ideias Feitas, publicado no final da vida, ele resumiu: “Fornarina. Era uma mulher muito bonita. É tudo o que precisamos saber”.
OLIVE RIPIENE ALL`ASCOLANA
Rende: 40 azeitonas
INGREDIENTES
.1/2 cebola média bem picada
.80 ml de azeite de oliva
.100g de lombo de porco picado
.100g de vitelo picado
.20g de queijo parmigiano ralado
.1 gema
.40 azeitonas verdes, grandes, sem caroço, em conserva
.3 ovos inteiros (para empanar as azeitonas)
.farinha de rosca o quanto baste (para empanar as azeitonas)
.óleo abundante (para a fritura)
.salsinha picada a gosto
.sal e pimenta-do-reino moída na hora a gosto
PREPARO
1. Em uma panela, faça suar lentamente a cebola no azeite previamente aquecido. Coloque o lombo de porco, o vitelo e deixe as carnes dourarem levemente.
2. Tempere com sal, pimenta e junte a salsinha. Tampe a panela, para as carnes soltarem um pouco da própria água ou, se necessário, pingue mais um pouco de água.
3. Quando as carnes estiverem macias, retire-as do fogo e passe-as pelo processador, sem o líquido do cozimento. Deixe esfriar, incorpore o queijo ralado, a gema e misture bem.
4. Recheie as azeitonas com essa mistura, preenchendo-as completamente, com a ajuda de uma seringa ou o cabo de uma colherinha de café.
5. Bata os ovos e tempere-os com um pouco de sal. Passe as azeitonas nos ovos batidos e depois na farinha de rosca, deixando-as completamente empanadas.
6. Frite as azeitonas, aos poucos, no óleo previamente aquecido, até ficarem douradas e crocantes. Escorra-as em papel absorvente e sirva-as quentes.