Assine VEJA por R$2,00/semana
Imagem Blog

Augusto Nunes Materia seguir SEGUIR Seguindo Materia SEGUINDO

Por Coluna
Com palavras e imagens, esta página tenta apressar a chegada do futuro que o Brasil espera deitado em berço esplêndido. E lembrar aos sem-memória o que não pode ser esquecido. Este conteúdo é exclusivo para assinantes.
Continua após publicidade

Especial VEJA: João Goulart, um coadjuvante no papel de protagonista

AUGUSTO NUNES Refestelado num sofá no 3º andar do Palácio do Planalto, tomado pelo bando de gaúchos felizes com o resultado do plebiscito que havia encerrado a curta experiência parlamentarista, o capataz da estância de João Goulart em São Borja resumiu a dúvida que o afligia. “Janguinho, aqui estamos no gabinete do presidente”, constatou Bijuja. […]

Por Augusto Nunes Atualizado em 31 jul 2020, 04h08 - Publicado em 1 abr 2014, 09h32

blog-maria-thereza-goulart

AUGUSTO NUNES

Refestelado num sofá no 3º andar do Palácio do Planalto, tomado pelo bando de gaúchos felizes com o resultado do plebiscito que havia encerrado a curta experiência parlamentarista, o capataz da estância de João Goulart em São Borja resumiu a dúvida que o afligia. “Janguinho, aqui estamos no gabinete do presidente”, constatou Bijuja. “Só não sei se nós subimos ou se é a República que está descendo…” Mais de cinquenta anos depois, o empresário Ronald Levinsohn, testemunha da cena, continua achando que Jango deveria ter levado a sério a pilhéria de Bijuja. João Belchior Marques Goulart fora um razoável deputado federal, um competente chefe do PTB e, entre janeiro de 1956 e agosto de 1961, o vice invisível que todo governante pede a Deus. Mas as trapalhadas do ministro do Trabalho de Getúlio Vargas e os equívocos do presidente ofuscado pela existência de um primeiro-ministro avisavam que talvez não estivesse pronto para o papel principal. Seu desempenho na chefia do governo, sobretudo nas 48 horas finais, provou que o aplicado coadjuvante não havia nascido para protagonista.

“Era difícil não gostar de alguém tão simpático, amável, incapaz de odiar os piores inimigos”, disse em 1980 o general Argemiro de Assis Brasil. “Mas a verdade é que Jango só sabia governar uma estância, que é algo muito diferente de um país de dimensões continentais atormentado por crises desde 1922.” O desapreço pela rotina administrativa foi igualmente testemunhado por Ronald Levinsohn. “Uma vez ele me chamou a Brasília para ajudá-lo a livrar-se de alguns documentos que precisava assinar”, lembra o empresário. Confrontado com a montanha de papel, sugeriu que embarcassem num avião e despachassem enquanto voavam para o Rio: “Aprovamos até a reforma do telhado da alfândega de Uruguaiana”.

“Ele foi eleito vice-presidente, não estava preparado para as funções que teria de desempenhar”, afirmou Assis Brasil, chefe da Casa Militar nos últimos cinco meses do governo. Concordavam com o general os incontáveis militares e políticos que sempre enxergaram uma reedição intragável de Getúlio naquele estancieiro rico, boêmio e mulherengo, bom de conversa e de copo, que usava o apartamento no Edifício Chopin, ao lado do Copacabana Palace, para confabular em trajes íntimos com sindicalistas, dirigentes da UNE e políticos orientados para uma guinada radical à esquerda. Em agosto de 1961, as reações à renúncia de Jânio Quadros deixaram claro que, se dependesse da caserna, Goulart jamais seria o número 1. O almirante Sylvio Heck, por exemplo, pensou imediatamente no substituto ao ouvir do titular a decisão de abandonar o cargo. “Mas nós levamos tanto tempo para tirar essa gente do poder…”, lastimou o ministro da Marinha. “Como é que o senhor vai entregar-lhes novamente o governo?”, recordou a Jânio.

Continua após a publicidade

Forçado a engolir sem engasgos o purgante parlamentarista, tornou-se um presidente que nada presidia. Depois de recuperar os poderes que perdera, esperou até março de 1964 para assumir efetivamente o papel disputado por numerosos atores em ação no balaio de grupos, partidos e indivíduos que só não divergiam quanto à urgência das chamadas reformas de base. Entre tantos, nenhum concorrente lhe parecia tão incômodo quanto Leonel Brizola, ex-governador do Rio Grande do Sul que se elegera deputado pela Guanabara. “Ele não suportava mais a liderança do Brizola”, atestou Darcy Ribeiro. Segundo o chefe da Casa Civil, Jango decidiu transformar o comício de 13 de março no duelo decisivo com o cunhado, parceiro e rival.

Um dos quinze oradores que precederam Goulart, Brizola encerrou seu discurso com o repto: “O nosso presidente que se decida a caminhar conosco e terá o povo ao seu lado: quem tem o povo ao seu lado nada tem a temer”. Aos 45 anos, quem replicou foi um novo Jango. Num tom de voz muitos decibéis acima do normal, suando muito, o presidente encampou publicamente todas as reivindicações da constelação esquerdista. E passou das palavras à ação ao anunciar que assinara dois decretos que prenunciavam a reforma agrária e a estatização de bens privados ligados à produção de petróleo.

Ao apanhar a luva atirada por Brizola, o conciliador vocacional foi substituído por um radical em estado de beligerância ─ e tornou inevitável o choque das duas placas tectônicas que, perigosamente próximas desde a metade do século, dividiam o mundo político brasileiro. Entre 13 e 30 de março, o presidente de andar claudicante, imposto por uma doença venérea que paralisou seu joelho esquerdo, avançou em marcha batida pela trilha à beira do penhasco. Solidário com marinheiros e sargentos sublevados, juntou ao fantasma comunista e ao espectro da “república sindicalista” a visão da hierarquia despedaçada. Foi essa a assombração que colou as Forças Armadas, então às voltas com intrigas, ciumeiras e ressentimentos tão desagregadores quanto os que assolavam os antagonistas.

O presidente disposto a tudo para consolidar-se no poder foi ouvido pela última vez na noite de 30 de março. No jantar com os sargentos no Automóvel Clube, atribuiu a responsabilidade por um provável derramamento de sangue ao que qualificou de “forças poderosas e insensíveis à realidade nacional”. No dia seguinte, a notícia do levante em Minas ressuscitou o estancieiro pacato e o chefe político titubeante. Enquanto tropas vindas de Minas e São Paulo se aproximavam do Rio, Jango travava combates telefônicos para recompor o esquema militar que até a véspera parecia imbatível. Um a um, os comandantes de Exército aderiram ao golpe. Generais do povo e almirantes vermelhos sumiram. Abatido pelas decepções sucessivas, o presidente só rompeu o silêncio para evitar confrontos armados. O último a defender a resistência a bala foi Leonel Brizola. Na madrugada de 2 de abril, ao desembarcar em Porto Alegre, Jango foi para uma reunião na casa do general Ladário Telles, comandante do III Exército. “Tenho armas e homens em número suficiente”, informou o anfitrião. “Mas preciso que o senhor dê as ordens.” O próprio Brizola sugeriu providências urgentes e, anos depois, contou a resposta. “Aí Jango falou: ‘Se a minha presença no governo for à custa de derramamento de sangue, prefiro me retirar’. E foi pescar no Rio Uruguai.”

Publicidade

Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

Domine o fato. Confie na fonte.

10 grandes marcas em uma única assinatura digital

MELHOR
OFERTA

Digital Completo
Digital Completo

Acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de R$ 2,00/semana*

ou
Impressa + Digital
Impressa + Digital

Receba Veja impressa e tenha acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de R$ 39,90/mês

*Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
*Pagamento único anual de R$96, equivalente a R$2 por semana.

PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
Fechar

Não vá embora sem ler essa matéria!
Assista um anúncio e leia grátis
CLIQUE AQUI.