Você já viu alguém entrar em uma loja de vinhos e pedir por um que tenha aroma de flor de sabugueiro? E aquela nota de alcaçuz ou groselha fresca recém-colhida do bosque molhado, já sentiu? Quem passou a questionar essas notas tão reproduzidas em catálogos e salas de degustação pelo mundo afora foi a brasileira Priscilla Hennekam. Descobri o trabalho dela por indicação do chileno Cristian Rodrigues, principal líder da vinícola Emiliana, que mencionou um dos artigos de Priscila justamente no momento da degustação de seus vinhos durante a Prowine, principal feira de vinhos das Américas.
O artigo em questão, “Don’t tell me what I taste” (“não me diga o que estou degustando), tem rodado o mundo. O projeto de Priscilla, “Rethinking the Wine Industry” (“repensando a indústria de vinho”), conta atualmente com cerca de 10.000 profissionais de diferentes partes do planeta. O objetivo dele é repensar as bases formais e as estruturas seculares desse universo que hoje podem não fazer mais sentido — ou pior, afastar as pessoas dessa bebida que remonta à história de diversas culturas. “Acredito que muitos dos desafios enfrentados pela indústria do vinho estão enraizados na cultura e na mentalidade que a educação dessa bebida nos impõe, e isso nos limita a inovar, resultando em estagnação”, disse Priscilla em conversa com a coluna AL VINO.
Natural de Natal, Rio Grande do Norte, ela recentemente contou em uma revista de Delhi, na India, que começou a beber vinho de uma forma bastante exótica, misturado com leite condensado, num famoso coquetel servido nas praias de sua cidade. Só na faculdade de gastronomia teve contato com o vinho fino e seco e todo esse universo. “Gosto de contar a minha história porque ela me conecta com centenas de pessoas, principalmente em um país que tem como o principal vinho vendido um rótulo doce”, afirma. Há doze anos fora do Brasil, Priscilla morou em Mendoza, na Argentina, antes de migrar para Adelaide, na Austrália, onde atua como consultora de negócios de vinho. “Precisamos transformar a educação de vinho, torná-la mais acessível. Definitivamene, não é preciso ter diploma para se apreciar um bom vinho”, afirma.
A seguir, os principais trechos da nossa conversa:
Sobre as notas de degustação, de fato nunca vi ninguém entrar em uma loja de vinho buscando algum rótulo com aroma de flor de sabugueiro. Você acredita que esse tipo de comunicação aproxima ou afasta as pessoas do universo do vinho? Certamente mais afasta do que aproxima. Já vivi situações em que você explica esses aromas na loja achando que está ajudando e, no final, a pessoa pergunta: está bem, mas qual eu escolho? Gosto de sugerir vinho para o churrasco, para maratonar filmes e seriados na Netflix, para um piquenique… Claro que palavras como leve ou encorpado fazem sentido, mas, para quem está começando, jargões não dizem nada e afastam quem está começando.
O que falta para criar uma melhor conexão? Compreender que nesta busca o anseio é por familiaridade e para isso a ressonância emocional é crucial. Aromas como flor de sabugueiro, que para muitos consumidores são absolutamente desconhecidos, irão falhar e criam desconexão. A indústria do vinho simplesmente ignora descobertas do neuromarketing, que enfatiza a escolhas que busquem conforto, e continua aderindo a estratégias ultrapassadas. Para envolver os consumidores e trazer mais pessoas para o vinho é preciso criar uma comunicação que ressoe emocionalmente e faça sentido, claro.
Há vinícolas onde essa comunicação é diferente? Cada vez mais vemos pequenas vinícolas adotando abordagens inovadoras. Por exemplo, visitei uma vinícola em Napa (Califórnia) chamada Anarchist Wine Co., onde os rótulos enfatizam o conceito de notas de sentimentos em vez das tradicionais notas de degustação. Um de seus espumantes, apropriadamente denominado 15 Minutos de Fama, é descrito assim: “te eleva a um momento brilhante seguido de um abandono frívolo. As bolhas dançam e em minutos vão embora. É fugaz e fabuloso. Aproveite cada segundo!”. Eles evitam mencionar notas de degustação ou quaisquer outros detalhes típicos e pouco inspiradores.
Você já foi bastante criticada por não falar de vinho como regem os padrões das fichas técnicas, como foi isso? Eu estudei para o WSET (Wine & Spirit Education Trust, baseada em Londres, que oferece certificações globais desde 1969), mas, infelizmente, não passei no exame D3 (Vinhos do Mundo). Ao receber o retorno da prova, percebi que tinha dificuldade em transmitir uma análise sofisticada nas minhas respostas, de acordo com o WSET. Isto levou-me a questionar se a indústria do vinho necessita realmente deste nível de sofisticação. Os consumidores estão realmente procurando por isso ou é apenas uma expectativa da própria indústria, sem base nos desejos reais do consumidor?
Consumo de vinho harmoniza com uma atitude esnobe? Lugares como a Sede 261, em São Paulo, no Brasil estão prosperando ao eliminar o esnobismo do vinho. Percebi que muitos da Geração Z e da geração Y estão gostando da experiência. Precisamos de mais empresas como estas, que ofereçam diversas experiências e caminhos para trazer diferentes pessoas para essa cultura. O vinho deve ser acessível, permitindo que mais pessoas o apreciem e desfrutem.
Você acha que os críticos mais populares e importantes têm culpa na perpetuação desse tom esnobe? Sim, penso que existe um certo nível de responsabilidade entre os críticos proeminentes. O foco no jargão técnico e na análise sofisticada pode, por vezes, criar uma barreira para os consumidores comuns, fazendo com que o vinho pareça algo elitista e inacessível. Ao priorizar a acessibilidade e a narração de histórias, os críticos poderiam ajudar a promover uma cultura do vinho mais inclusiva, que convida todos a desfrutar e explorar.
Para apreciar um bom vinho é necessário identificar essas notas de degustação e aromas? De jeito nenhum. Para ter uma experiência envolvente e memorável, você precisa de uma história convincente. Um contador de histórias habilidoso venderá muito mais vinho, por exemplo, do que alguém que usa descrições elaboradas repletas de terminologia que até mesmo muitos profissionais do vinho têm dificuldade em entender. Conectar-se com os consumidores em um nível pessoal por meio da narrativa é o que realmente ressoa.
Quando alguém compra um vinho caro e não consegue perceber essas sutilezas, você acha que se está jogando dinheiro fora? As pessoas compram vinho por motivos emocionais. Quando compram uma garrafa cara, muitas vezes procuram um sentimento de autoestima ou prestígio, muito mais do que profundo conhecimento de vinho, na maioria das vezes. Embora muitos consumidores tenham esse conhecimento, a maioria está simplesmente em busca de uma experiência agradável. Se for esta a busca, não está jogando dinheiro fora porque bons vinhos entregam essa experiência, sem dúvida.
Qual o ritual das salas de degustação que você considera mais desnecessário? Um ritual que considero um tanto desnecessário é o processo excessivamente elaborado de girar e cheirar a taça, no qual algumas pessoas insistem. Embora compreenda a importância de arejar o vinho e apreciar os seus aromas, o foco extremo nestas etapas pode parecer pretensioso e prejudicar o prazer. Muitas pessoas não conseguem encontrar os aromas descritos e ficam ali, naquela movimentação sem sentido. O vinho deve ser uma questão de experiência social, não apenas de seguir um conjunto rígido de regras. Acho importante perceber o que faz você sentir e apreciar melhor o vinho, sem se deixar levar pelo ritual em si.
Qual sua sugestão para leigos que querem aprender e se aproximar do universo do vinho? Há passos muito práticos. O primeiro é seja curioso, experimente diferentes vinhos, uvas de lugares distintos sem se preocupar com a terminologia. Foque em distinguir o que você gosta e não gosta. O segundo é monte ou participe de confrarias mais casuais, talvez com seus amigos mesmo. Dividir impressões e aprender uns com os outros de maneira mais relaxada pode ser muito prazeroso. O terceiro é que existem hoje muito eventos de vinho com diferentes temas e abordagens, participe deles. Para finalizar esteja com a mente aberta, a apreciação e descoberta dos vinhos são uma jornada. Esteja disposto a experimentar coisas novas e aprender com cada experiência, mesmo que isso signifique sair da sua zona de conforto. Ao seguir essas etapas, você pode cultivar uma conexão mais profunda com o vinho enquanto aproveita o processo.
Você gosta de vinho brasileiro? Para quais momentos os recomendaria? A cultura vibrante e as paisagens deslumbrantes do Brasil representam verdadeiramente como devemos promover nossos vinhos para o mundo. Para mim, a essência de apreciar os vinhos brasileiros está no encontro com os amigos. Eu gosto muito das experiências de confrarias que temos no Brasil, algo que não é tão prevalente na Austrália. É incrível como nos reunimos como amantes do vinho, formando grupos que se reúnem regularmente para partilhar a nossa paixão. Os vinhos brasileiros são perfeitos para criar um ambiente repleto de risadas e histórias. E claro, sou apaixonada pelos espumante brasileiros, gostaria de encontrá-los aqui na Austrália.