A Califórnia brasileira quer agora ser também o Napa Valley nacional
Com a técnica de dupla-poda e investimento agressivo, a Terras Altas que colocar Ribeirão Preto no mapa das grandes regiões produtoras de vinho do mundo
Em dias mais frescos como os que fizeram esta semana aqui na capital paulista, Ribeirão Preto, situada no nordeste do estado, a 314 km de São Paulo, costuma ter temperaturas máximas que ficaram entre 27 e 31 graus e a mínima de 21. Houve verões com mais de 40 graus e, nos últimos anos, nos meses mais quentes, a sensação térmica costumava ser de fritar ovo no asfalto, obrigando os equipamentos de ar-condicionado a trabalhar no modo máximo, de forma a garantir a sobrevivência.
A partir da década de 80, o desenvolvimento econômico e a renda acima da média nacional fez Ribeirão Preto ser conhecida como a “Califórnia brasileira”. No campo da gastronomia, a comparação não fazia muito sentido, é verdade. Enquanto a Califórnia original ficou famosa pela região de produção de vinhos de alta qualidade nO Napa Valley, Ribeirão sempre foi a terra da cerveja. Desde 1937, na cidade de terra roxa, solo fértil e seleiro da força do agronegócio nacional, reina a Choperia Pinguim. Segundo reza a lenda, ela serve o líquido que sai da torneira a 1,5 grau, com colarinho que leva dois minutos para evaporar e chega à mesa ainda com 4 graus. Um refresco e tanto para as temperaturas escaldantes.
A tradição do chope continua forte por lá, mas chegou o momento em que a “Califórnia brasileira” tem a pretensão de se tornar também o “Napa Valley nacional”. O esforço para tentar produzir vinhos de alta qualidade num cenário e em condições climáticas improváveis é comandado pela vinícola Terras Altas, que iniciou a produção em 2017.
Tudo começou com o suporte da dupla poda, técnica criada pelo agrônomo mineiro Murillo Regina que inverte o ciclo da vinha e faz com que a colheita seja no inverno – processo que está transformando a história da viticultura do Brasil. Graças a essa técnica, 200 vinícolas estão em funcionamento entre São Paulo e Bahia — mais outras tantas devem se juntar às pioneiras dentro de poucos anos.
Responsáveis pela Terras Altas, os novos viniviticultores ribeirão-pretenses José Renato Magdalena e Fernando Horta já eram sócios em empreendimentos na construção civil, haras e gado de corte. Neste último, tinham a colaboração do agrônomo Ricardo Baldo, que se uniu à dupla, formando o trio que é proprietário da vinícola no interior de São Paulo.
As primeiras vinhas da cepa de origem francesa Syrah, compradas do pai da técnica, foram plantadas em um terreno que fica a 250 metros de altitude do centro de Ribeirão — o centro da cidade, por sua vez, está a cerca de 500 metros de altitude do nível do mar. Por lá, segundo Baldo, as temperaturas mínimas podem chegar a 3,5 graus (durante dois dias do ano) e 7 a 12 graus, em uma semana de inverno. Ele diz que a amplitude térmica (diferença entre as máximas e mínimas), graças ao vento, é na média de 20 graus, o que é excelente para maturação das uvas, de maneira a se preservar cor, aromas que dependem desse amadurecimento mais lento.
Nos 10 hectares do terreno foi implantado a vinícola que conta com maquinário de recepção de uvas francesas, da marca Bucher Vaslin, e bombas de vinho italianas Evoneta, reconhecidas por serem uma das mais delicadas hoje no mercado Europeu. As barricas de carvalho são das melhores casas de tonelaria francesas, como François Frères e Taransaud. Para se ter uma ideia, uma única peça custa por volta de 1 000 euros. A sala de barricas da Terras Altas tem 40 unidades. O valor do investimento na indústria do estabelecimento, segundo Baldo, ficou na casa dos 20 milhões de reais.
Para a produção da primeira safra foi escalado o enólogo chileno Cristian Sepúlveda, responsável pelas medalhas internacionais da vinícola Guaspari, de Espírito Santo do Pinhal. E batata! Ou melhor, uva! A primeira safra da Terras Altas já trouxe a primeira medalha da Decanter, um dos principais e mais sérios concursos de vinhos realizado anualmente em Londres.
VINHO HARMONIZADO COM AR-CONDICIONADO
Hoje, a casa produz quatro rótulos, todos da uva Syrah. Um rosé Cava do Bosque 2023 (R$ 120), muito frutado e fresco, que tem no rótulo um desenho de uma das netas de 12 anos de um dos sócios. Entre os tintos estão o Entre Rios (R$ 180), sem passagem por madeira, o Equilíbrio (R$ 220), que no meu paladar mostrou bastante fruta vermelha e de fato equilíbrio no uso de madeira e o Evolução (R$ 310), potente demais para o meu paladar, pelo menos foi a minha impressão num almoço de uma quinta-feira quente em São Paulo.
Segundo Fernando Horta Jr., filho de um dos proprietários, essa potência não costuma assustar o público da quente cidade. “A turma costuma fechar a casa e aumentar o ar-condicionado para tomar os bons Cabernet Sauvignon”, disse ele, referindo-se aos vinhos encorpados preferidos de seu pai. Durante essa mesma apresentação, Baldo fez questão de dizer que fazem vinhos com “mínima intervenção”, um ativo cada vez mais precioso atualmente. A “mínima intervenção” da Terras Altas, no entanto, como o próprio Ricardo Boldo reconheceu, não abre mão do uso durante o processo de Dormex (um agrodenfesivo usado para quebrar a dormência da planta na ausência do frio, e fazer com que todo vinhedo brote ao mesmo tempo), além das borrifações de fungicidas e de leveduras selecionadas, o que significa “fermentos industriais” para a fermentação.
Independentemente do uso adequado ou não do rótulo de “mínima intervenção”, é fato que os vinhos feitos na Terras Altas são convencionais, com ótimo potencial e qualidade. Além disso, a vinícola já possui estrutura de enoturismo que tem amealhado o público região. Um “wine tour” que mostra o caminho da uva e termina com uma degustação do vinho, acompanhado de queijos da região e azeites brasileiros custa R$ 120, por pessoa. Há também a concorrida festa da colheita, que termina com um almoço harmonizado pelo chef do restaurante da vinícola, por R$ 700, valor do ingresso único. Ou há ainda um brunch, estilo pique-nique harmonizado, montado no gramado com vista para as vinhas por R$ R$ 350, por pessoa. Atualmente a produção da Terras Altas está na casa das 20 mil garrafas por ano e com elas, eles já começam a figurar em cartas de elegantes restaurantes paulistanos como Tre Bicchieri, Figueira Rubayiat e NB Steak. “Como temos o foco em qualidade, vamos até o teto de 100 mil garrafas por ano”, disse Baldo à coluna AL VINO.
O início da história da Terras Altas mostra que o negócio é promissor e já fez de Ribeirão Preto uma interessante parada gastronômica para se tomar uma boa taça de vinho, além do chope gelado e com o colarinho tradicional da Pinguim – mas só o futuro dirá se a “Califórnia brasileira” poderá ser conhecida um dia também como o “Napa Valley nacional”.