É muito provável que você já tenha visto ao menos um dos vídeos vergonhosos de torcedores brasileiros “zoando” (é proposital o uso da gíria ridícula) na Rússia. Deparei-me com um desses pela primeira vez numa festa. Na mesa, só havia homens – os que começaram o papo deveriam saber, mesmo que instintivamente, que passariam a desfilar machismo e, por isso, esperaram as mulheres (algumas delas, feministas declaradas) deixar o recinto para aproveitar a deixa. Um deles começou a se empolgar: “Já viram o vídeo hilário (sim, foi dito “hilário”) dos brasileiros azucrinando uma russa na Copa?”. Algo nessa linha. Ao que ele pegou o celular, abriu o WhatsApp e deu play.
Primeiro, àqueles ignorantes, explico o motivo do vídeo ser extremamente machista (além de vários outros adjetivos que deixo ao leitor imaginar). Os torcedores tiravam sarro da russa se apoiando justamente numa piada sobre o que, na visão preconceituosa e simplista dos mesmos torcedores (todos homens), faria dela uma mulher. Também nem vislumbro a ideia de um grupo de mulheres fazendo o mesmo com um homem. Seria impossível inverter os papéis sem a coisa toda parecer saída de um filme de Buñuel.
Em suma, foi machista – e qualquer um que não pensar dessa forma, seja mulher ou homem, certamente faz isso numa tentativa de disfarçar o próprio machismo. Como aqueles evidentes racistas que cantam por aí que não são racistas e ainda acrescentam a clássica “justificativa” de “Não existe racismo no Brasil” (quão babaca é tão afirmação!); ou os homofóbicos que defendem que homofobia seria só “opinião” (mais uma vez, isso não é só ignorante, como deveria se enquadrar como um crime).
Indignei-me com o primeiro vídeo que vi dos tais torcedores brasileiros. E, depois, com as tantas outras gravações de linha similar que surgiram via Facebook, WhatsApp etc. Mesmo assim, tem sido errôneo o tom do julgamento feito pelo povo da internet.
Twitter, Facebook, Instagram mais uma vez viraram um campo de guerra, com dois lados, e pouquíssimos espremidos no centro. Num canto, boçais como os dos vídeos que se espalharam, defendendo que tudo não passaria de uma brincadeirinha. Não, amigo, não foi uma brincadeirinha. Como bem comparou Contardo Calligaris em sua coluna na Folha de S. Paulo, as gravações se assemelham às selfies que nazistas tiravam ao lado de suas vítimas durante a II Guerra Mundial. Pois é esse tipo de gente que com o tempo dá apoio e faz surgir atrocidades como o nazismo – ou como Bolsonaro (deste, há tempo de se livrar, por vias democráticas).
Mas, do outro lado da guerra, no outro extremo, há os que pedem condenação sumária dos torcedores idiotas. Seguem a manada que leva ao tribunal do povo. Ouvi de alguns que os torcedores que envergonham a nação deveriam ser punidos com prisão, morte, sumindo da face da Terra. Esse lado radicalizado também falha, mesmo que em outra medida.
Repito que vejo com indignação os vídeos. E acredito, sim, que os protagonistas do mesmo têm de passar vergonha pública (até porque, afinal, a escolha de se expor em vídeo foi deles próprios) e ser julgados. Contudo, o julgamento deve vir da Justiça, não da internet. Lá se decide o que fazer – se trabalho comunitário, multa, prisão, ou mesmo nada. A nós, observadores do caso, seria resguardado refletir, conversar (mesmo que só online; pessoalmente é praticamente inviável) com estúpidos do tipo, na tentativa de transformar pensamentos e, assim, buscar alterar, em sociedade, o rumo disso que ainda acreditamos ser a civilização.
Sem diálogo, só com xingamentos e julgamentos precoces, ocorre o extremo oposto disso. Quem fica fulo (como eu) com o vídeo tende a ser atraído pelo discurso mais extremo contra o mesmo, vindo de quem for. Porém, o grupo dos indignados, como o de feministas mais contundentes, acaba por não levar à reflexão aqueles que poderiam ter seus comportamentos transformados. Em vez de diálogo, vira só um conflito irracional e que certamente não chegará a fins produtivos.
Agora, vamos além. Basta um mínimo de conhecimento histórico para saber que tribunais do povo não são uma boa solução. Para nada. Seriam muitos os exemplos drásticos disso. Mas um já é suficiente como ilustração: recorde-se dos fariseus e do (quase) apedrejamento de Maria, tal como fora contado na Bíblia.
Esses tribunais são falhos. Ainda mais quando guiados por turbas doidas com acesso a amplas plataformas de comunicação. Como é hoje com o Facebook.
Manadas se juntam para condenar o outro por uma razão simples de compreender. Espera-se que, ao ver o mal supremo em um pequeno grupo (ou num indivíduo), se alcance a própria salvação. Ao condenar o outro há a sensação primitiva de que se enaltece a si próprio.
Porém, todos cometemos erros ao longo da vida. Não se engane. TODOS (no tradicional Caps Lock do linguajar do século XXI).
Claro, talvez seu deslize não tenha a ver com machismo, ou com racismo. Mas pode ser ligado, por exemplo, a um julgamento prévio de outrem que acabe por levá-lo a uma condenação pública extrema.
Quantas vezes na humanidade já não mataram vítimas em praça pública porque “o povo” achava que a mesma havia cometido um crime que não cometera? Acha exagero? Vá então pesquisar (dê um Google!) sobre a história dos julgamentos vikings, ou acerca da Inquisição, ou do ISIS, ou do período de caça às bruxas nos EUA, ou ainda do que ocorria dentro das senzalas brasileiras.
Ou seja, amanhã ou depois pode ser você, ou um amigo seu, que será julgado na internet de forma extrema (e talvez injusta). Quem sabe por uma foto feita enquanto se estava entorpecido. Ou pelo uso casual de alguma droga ilegal. Ou por apoiar Bolsonaro. Ou Lula.
Frente a isso, reflita sobre a própria reação instantânea, via likes e dislikes, ao que ocorre no Facebook, no Twitter, no Instagram. Melhor: reflita antes de postar qualquer opinião sobre qualquer assunto.
Ah, mas não posso achar algo ruim? Claro que pode. Não posso escrever sobre minha posição? Claro que pode. Só tome cuidado para não se achar não só o dono da verdade absoluta como também o juiz de tudo e qualquer coisa. Pois, se seguir nessa linha, provavelmente você estará do lado dos fariseus no fim de sua própria história.
***
Aliás, sempre que menciono a Bíblia, me vem uma mesma questão à cabeça, que agora compartilho com os leitores: se Jesus estivesse vivo no nosso tempo, do lado de quem ele deveria ficar (em questões meramente probabilísticas)?
Qualquer um que já leu a escritura sagrada cristã – isso ao menos no trecho sobre Cristo –, com o mínimo de senso crítico, verá que Jesus era (o mítico ou o histórico) um rebelde que se revoltou contra o sistema ultraconservador de sua era, promovendo amor e se juntando a um grupo de rebeldes como ele (incluindo aí, prostitutas e leprosos).
Hoje, dificilmente ele estaria do lado dos tais torcedores brasileiros vergonhosos – mas talvez pedisse para não jogar pedras nos mesmos. Muito menos se alinharia àqueles que promovem a Tradição, Família e Propriedade (Cristo demoliu o primeiro conceito em seu tempo, questionou o segundo e renegou o terceiro). Caso você se considere cristão, pense sobre isso. Provavelmente Jesus hoje seria presença garantida no festival de amor que é a Parada LGBT; e condenaria a Marcha que insistem em dizer que o homenageia.
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