Matemático, filósofo, engenheiro, inventor e astrônomo grego, Arquimedes de Siracusa passou a ser um ícone de um dos pilares da ciência devido à descoberta do princípio físico que leva seu nome. A história conta que, ao entrar em uma banheira cheia até a borda, ele percebeu a possibilidade de entender o conceito de volume e densidade relativa dos corpos. Essa revelação desencadeou uma conquista monumental, levando-o a exclamar: “Eureka!” – uma expressão grega que significa “eu descobri”. Em seguida, o sábio correu pela cidade, nu, em direção ao palácio real para compartilhar a notícia emocionante com o rei. É claro que momentos assim são incomuns e, na maioria das vezes, menos emocionantes do que aparentam. Foi ao realizar uma simples prova, por exemplo, que o biólogo Marcelo Briones, professor do Centro de Bioinformática Médica da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), percebeu pela primeira vez a possibilidade de identificar as contaminações virais humanas mais antigas já registradas. “Naquele dia, meus alunos provavelmente copiaram como nunca antes”, ele relata.
Sem gritar “eureka” diante da sala cheia, mais preocupada em concluir o semestre do que com amostras virais de 50 mil anos, ele rapidamente montou uma força-tarefa para testar sua intuição. A equipe incluiu a bióloga Renata Ferreira, o matemático Fernando Antonelli, o então graduando em Tecnologia em Informática em Saúde Gustavo Alves e o engenheiro Marcello Ramon. O objetivo era criar um protocolo de pesquisa para identificar patógenos virais em sequências de DNA neandertal. Briones e seus colegas analisaram o DNA de dois esqueletos encontrados na caverna Chagyrskaya, na Rússia. As amostras foram coletadas por pesquisadores do Instituto Max Planck, na Alemanha, e o sequenciamento completo foi disponibilizado publicamente para a comunidade científica. “O que nós fizemos foi olhar para a ‘lata de lixo’ de dados”, explica Briones.
O Estudo
O estudo pioneiro identificou três vírus em ossos de Neandertais de 50 mil anos de idade. Esses patógenos ainda afligem os humanos modernos: adenovírus, herpesvírus e papilomavírus, são os responsáveis pelo resfriado comum, herpes labial e verrugas genitais, além de câncer. A descoberta pode ajudar a resolver um dos maiores mistérios da era Paleolítica: o que teria causado a extinção dos Neandertais.
A tarefa, porém, não foi simples. Uma série de testes envolvendo análises biológicas, matemáticas e computacionais foram desenvolvidos para evitar falsos positivos. O artigo inicial passou por um processo rigoroso de seis revisões, com a exigência de testes adicionais em diversas fases, até a publicação. “Eu nunca tive um artigo tão escrutinado”, diz Fernando Antonelli, com a concordância de Briones e Renata Ferreira. Revisões em artigos científicos costumam ser requisitos intransponíveis para a publicação, mas há uma percepção comum dos pesquisadores que trabalhos desenvolvidos no Brasil ou longe dos grandes centros do norte global passem por uma análise mais rigorosa, em especial nas revistas de maior impacto, resultando em um processo de publicação muitas vezes oneroso e lento. “Nenhuma das revisões, porém, conseguiu contradizer nossos resultados”, complementa Renata. “O que mostra que estamos no caminho certo”.
Isso não significa que não há uma longa estrada pela frente. Uma das hipóteses mais recentes sobre a extinção dos neandertais sugere que a contaminação por infecções virais teriam afetado diretamente a sobrevivência desses grupos. Sem dúvida, os dados iniciais de Briones e sua equipe ajudam a corroborar com esta tese, mas estão longe de defini-la como verdadeira. “O principal problema dessa teoria é que, para prová-la, seria necessário uma análise populacional e sabemos que existem poucas amostras de neandertal disponíveis, o que dificulta esse tipo de conclusão”, diz Tiago Ferraz, doutor em arqueogenética pela USP e não fez parte do estudo.
Ferraz destaca outro fator: a idade dos fósseis. Todo material biológico como, por exemplo, DNA ou RNA, apresenta um potencial de degradação que interfere na qualidade dos resultados. Se tratando de amostra biológica de neandertais, o material genético utilizado para as análises de sequenciamento, certamente não estavam totalmente íntegros. “Não há uma linearidade entre idade e taxa de desaminação (degradação do DNA), mas há uma tendência de que quanto mais antigas as amostras, mais degradadas elas sejam”, complementa.
Além disso, os três vírus identificados têm uma série de características próprias que dificultam a acurácia das técnicas de bioinformática usadas. Isso porque, ao contrário dos retrovírus, como o HIV, o papilomavírus, herpesvírus e adenovírus não inserem seu DNA nos cromossomos de seus hospedeiros. Ou seja, esses vírus não ficam “marcados” nas pessoas que contaminam, eles ficam “flutuando” próximo ao núcleo das células que infectam. Isso deixa o material genético viral mais desprotegido e dificulta a detecção com o passar do tempo, o que também compromete a precisão dos resultados. “Uma pesquisa deste tipo é quase como montar um quebra-cabeças olhando para a imagem que está na caixa, com a diferença de que as peças misturadas podem ser de centenas de quebra-cabeças totalmente diferentes”, explica Paulo Eduardo Brandão, virologista especializado em co-evolução de sistemas vírus-hospedeiros e professor da USP, que também não participou da pesquisa.
Os próximos passos
Estes problemas, todavia, não comprometem a inovação dos resultados iniciais. Mas apontam para a necessidade de pesquisas adicionais. Questões como quem infectou quem (os neandertais teriam infectado os humanos ou o contrário), bem como a história evolutiva desses vírus ainda demandam esclarecimentos. As dúvidas não assustam a equipe de pesquisadores, pelo contrário. “Nossas próximas publicações serão ainda mais interessantes que a primeira”, promete Briones.
Nas próximas rodadas, eles planejam trazer maiores informações sobre a atuação desses patógenos nos neandertais e um experimento ousado de recriação desses vírus antigos em laboratório. “Será como criar uma máquina do tempo. A expectativa é entendermos mais sobre como eles agiam e evoluíam. Isso nos dará informações importantes não só sobre o passado dessas doenças, mas sobre como elas nos impactam no presente”, explica Renata. Se o percurso está longe do fim, a equipe não deixa de comemorar os resultados iniciais. “Fazer pesquisa no Brasil é difícil. Quando olhamos comunidades científicas de ponta, é como o 15 de Piracicaba jogando contra o Real Madrid”, diz Briones. Mas, dessa vez, o 15 de Piracicaba ganhou. Vitória da ciência brasileira.