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O óvni no meio da caatinga

Somando linhas modernas à paisagem do parque idealizado pela arqueóloga Niède Guidon, o Museu da Natureza mostra como valorizar o patrimônio cultural

Por Marcelo Marthe | fotos Paulo Vitale, da Serra da Capivara
Atualizado em 14 dez 2018, 07h00 - Publicado em 14 dez 2018, 07h00

Enquanto trabalhava em uma exposição sobre arte rupestre, na São Paulo de 1963, a jovem Niède Guidon ouviu um cidadão comentar que havia “desenhos de índio” parecidos na sua terra. A arqueóloga anotou o nome da cidade — São Raimundo Nonato, no Piauí — e partiu em busca dos tais desenhos. Sozinha em seu Fusca, enfrentou milhares de quilômetros em estradas precárias atrás daquela que viraria a obsessão de uma vida. Não chegou lá na primeira investida: a queda de uma ponte interrompeu a viagem. Já na semana passada, aos 85 anos, a arqueóloga chegou ao lugar consagrado graças a seus esforços, agora dirigindo uma Hilux. Quando ela passou pela guarita do Parque Nacional da Serra da Capivara, não houve obstáculo: o guarda abaixou a cabeça em sinal de respeito (ou medo). Ainda se recuperando de uma infecção pulmonar, Niède desceu da picape de bengala e caminhou, rápida, pela trilha que leva ao principal sítio rupestre do parque piauiense, onde posaria para o retrato desta reportagem. “Vai demorar? Estou com pressa”, disse, dando batidas com a bengala no chão. Niède tem pressa de fazer acontecer. Sua mais nova ousadia se chama Museu da Natureza, estrutura de aço e vidro de 4 000 metros quadrados que será inaugurada na terça-feira 18. Na paisagem por si só estupefaciente da Serra da Capivara, com seus imponentes paredões de arenito e caatinga intocada, o prédio em forma de mandala high-tech emerge como um óvni.

A abertura do Museu da Natureza arremata com nota otimista um ano marcado pelo incêndio do Museu Nacional, no Rio de Janeiro. Talvez por isso, um cético apressado poderia não ver sentido em se abrir mais um museu, com investimento de 13,7 milhões de reais do BNDES, enquanto instituições no país amargam crônica falta de verbas. Além do mais, para que serviria um museu tão imponente em um fim de mundo acessível a poucos? A resposta é que o Museu da Natureza não apenas acrescenta arrojo arquitetônico a um patrimônio natural e arqueológico reconhecido pela Unesco: sua chegada contribui para a conservação dessas riquezas. O museu agrega um toque de entretenimento a um conjunto com vocação inequívoca para ser admirado. “A melhor forma de preservar é trazer mais turistas e desenvolver a região”, diz Niède. Para a Serra da Capivara triunfar no turismo, no entanto, ainda falta o básico: condições de receber bem as pessoas. O aeroporto local foi construído há tempos, mas ainda não tem voos comerciais (culpa, claro, dos governos). Para chegar lá de São Paulo ou do Rio, é preciso pegar voos com conexões e depois enfrentar de cinco a sete horas de estrada em geral ruim, com trechos de terra. A rede hoteleira da região deixa a desejar. Tudo isso precisa ser corrigido. Mas o patrimônio que se encontra ali é extraordinário.

ONÇA BRAVA - Niède, em frente às pinturas rupestres da Serra da Capivara: “A melhor forma de preservar é trazer turistas e desenvolver a região” (Paulo Vitale/VEJA)

O novo museu nasce da costela de um antecessor criado há duas décadas para abrigar os achados nas escavações de Niède na Serra da Capivara. Construção discreta, o Museu do Homem Americano logo se revelou pequeno para conter as duas modalidades de tesouro extraídas do parque: as marcas da presença do homem no Brasil pré-histórico e os restos de animais que habitaram a região em eras remotas. Enquanto a parte humana continuou no museu antigo, a vida animal é a atração da nova galeria.

Ao adentrar a exposição, o espectador vive uma “experiência imersiva radical”, nas palavras do curador Marcello Dantas. Do Big Bang à formação da caatinga, passando pelos dinossauros e pela Era do Gelo, as transformações do planeta são ilustradas com vídeos em 3D, pirotecnias cenográficas e simuladores que dão ao visitante a sensação de voar como as andorinhas dos grotões do parque. O condutor da narrativa são as intempéries. “A natureza não é senhora de todas as coisas. Ela obedece aos caprichos de alguém acima dela — o clima”, diz Dantas.

CLONE - Niéde Silva, no laboratório: nome e carreira homenageiam a pesquisadora (Paulo Vitale/VEJA)

Em meio ao passeio, brotam os tesouros arqueológicos da região. Há mais de 100 fósseis de trilobitos, prova de que o sertão um dia foi mar. Ossadas de espécies extintas da megafauna são o testemunho de um tempo em que o Piauí era coberto por vegetação luxuriante. Pertencem a bichos que desapareceram há cerca de 10 000 anos, como o gliptodonte, um tatu tão grande quanto o Fusca que Niède dirigia. A região era o lar de uma antepassada imensa das lhamas — a Palaeolama niedae (o nome homenageia Niède). O museu tem ossos de preguiças-gigantes; uma réplica do esqueleto completo do animal, com 5,70 metros, ocupa o átrio central.

Apesar do apelo pop do novo museu, as descobertas que fizeram a fama de Niède continuam em seu precursor mais acanhado. Foram os estudos do homem pré-histórico que puseram Niède no centro de uma controvérsia científica mundial. A teoria mais aceita sobre o povoamento das Américas reza que o homem chegou ao continente pelo Estreito de Bering, vindo da Ásia, há 15 000 anos. Niède, contudo, achou pedras lascadas que datariam de mais de 50 000 anos atrás. Os papas da área desdenharam. Nos últimos anos, porém, pesquisas no Chile, México e Estados Unidos corroboraram a tese dela, embora ainda valha o velho consenso.

MEGAFAUNA EM FESTA – Réplica da preguiça-gigante: museu com apelo pop (Paulo Vitale/VEJA)

Filha de pai francês, Niède saiu de Jaú, no interior de São Paulo, para estudar arqueologia em Paris. Na volta ao Brasil, não teve tempo de realizar sua busca no Piauí: depois da inconclusa viagem de Fusca, veio a ditadura militar, e ela foi denunciada como comunista. Fugiu para a França. “Eu não tinha nada a ver com política. Mas fui acusada por alguém que queria pegar meu cargo na universidade”, diz. Na época, Niède já era amiga de Ruth e Fernando Henrique Cardoso. Mais tarde, o ex-presidente e sua mulher seriam grandes apoiadores das benfeitorias que fizeram do Parque Nacional da Serra da Capivara uma unidade de conservação exemplar. É um deleite apreciar as cenas de dança, caça e sexo das pinturas rupestres com os paredões iluminados (mesmo sentindo o cheirinho do cocô do mocó, pequeno mamífero que vive nas rochas). E é bom ver logo. “Uns 30% das pinturas já se perderam. A rocha é frágil. Um dia, tudo vai sumir”, diz a arqueóloga.

Niède chegou em 1973, enfim, a São Raimundo Nonato, à frente de uma missão científica bancada pelo governo da França (ainda hoje ela vive da aposentadoria da École des Hautes Études, de Paris). Ao se estabelecer de fato na região, nos anos 90, deflagrou uma revolução. A rústica cidadezinha, hoje com 34 000 habitantes, a princípio não entendeu nada. “Eles me viam de calça e cabelo curto, e não sabiam se era mulher”, conta. A Fumdham, fundação que gere os museus e suas pesquisas, modernizou o parque, mas causou tumulto com sua luta para retirar antigos moradores da área. Quando um posseiro a ameaçou de morte, ela mandou que ele se preparasse, pois iria expulsá-lo da terra — e assim o fez. Niède não teme nem mesmo feras nativas da região. “Já encontrei onça e não tive problema”, relata. “Olhei nos olhos dela, ela olhou para mim. E foi embora.”

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BELEZA BRUTA - Visitantes apreciam a arte rupestre à noite: patrimônio nacional atraente e bem cuidado, apesar dos choques com a política cultural brasileira (Paulo Vitale/VEJA)

“Niède é um trator de esteira. Engata e vai”, diz a uruguaia Rosa Trakalo, sua amiga e aliada há mais de quarenta anos. Niède, Rosa e a arquiteta Elizabete Buco formam o trio de amazonas que zela por tudo na Serra da Capivara. Foi Bete quem projetou o novo museu. “Eu pensei na espiral porque é uma forma essencial da natureza”, diz. Como todo empreendedor que deixa sua marca, Niède não foge de rinhas. A última delas opôs sua fundação ao ICMbio. Quando o órgão federal que cuida dos parques nacionais anunciou que contrataria uma empresa terceirizada para gerir a Serra da Capivara, ameaçando a parceria com a Fumdham, a pressão da comunidade levou à queda da administradora local do ICMbio. Em seu lugar, entrou Marian Rodrigues, ex-aluna das escolas criadas pela arqueóloga. Niède venceu novo round.

Embora bem relacionada com políticos, ela nutre uma relação dúbia com o mundo oficial: “Brasília às vezes envia dinheiro para cá, às vezes manda para a Suíça”. Niède não é do tipo que se preocupa em agradar, mas fez uma gestão bem-­sucedida do patrimônio cultural. Para atraírem turistas, ela e as amigas conceberam uma fábrica de cerâmica de motivos rupestres, que emprega trinta jovens. Niède criou um curso de arqueologia pioneiro na região e formou gerações de guias e pesquisadores. “Meu pai foi dos primeiros a trabalhar no parque e me batizou com o nome dela”, diz Niéde da Silva Dias, de 40 anos, que atua no laboratório da fundação. Niède, a original, promete que, após a inauguração, deixará a instituição que criou. “Vou passear por aí.” Nem os mocós da Serra da Capivara levam esse anúncio a sério. Mas quem, às vésperas da abertura do Museu da Natureza, cutucaria essa onça com vara curta?

Publicado em VEJA de 19 de dezembro de 2018, edição nº 2613

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