Vista do reservatório Jaguari, que faz parte do Sistema Cantareira, na região de Vargem (Mariana Pekin/VEJA)
A proposta da Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp) para retirar uma segunda cota do volume morto do Sistema Cantareira, sem reduzir a vazão captada, pode deixar o nível do principal manancial paulista no vermelho em até 30% para o início de 2015. A concessionária busca aval dos órgãos gestores para captar mais 116 bilhões de litros da reserva profunda dos reservatórios, além dos 182,5 bilhões que começaram a ser sugados em junho e devem acabar entre outubro e novembro. Em janeiro deste ano, quando a crise da água foi declarada, o sistema estava no azul com 23% da capacidade.
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Só das represas Jaguari-Jacareí, que ficam entre as cidades de Bragança Paulista e Joanópolis, a cerca de 100 quilômetros da capital paulista, a Sabesp quer retirar mais 90 bilhões de litros represados abaixo do nível das comportas. Se a quantidade for toda utilizada, os reservatórios que representam 82% da capacidade ficarão com apenas 4% do seu volume total, incluindo o útil e o morto. Até domingo, a Sabesp já havia retirado 65,8 bilhões de litros do fundo das duas barragens, restando 38,5 bilhões de litros da primeira cota dessas represas, que devem durar até o fim de agosto.
A partir daí, a concessionária deve iniciar a captação de 78,1 bilhões de litros da Represa Atibainha, em Nazaré Paulista, com duração prevista até o fim de outubro, quando começa o período chuvoso. Sem a garantia de que as chuvas voltarão à normalidade e querendo manter a vazão atual de 19.700 litros por segundo para abastecer mais de 40% da Grande São Paulo, a Sabesp quer usar mais 116 bilhões do volume morto, totalizando 298 bilhões de litros da reserva, o equivalente a 30% do volume útil do manancial, que se esgotou no início deste mês. A proposta ainda precisa ser aprovada pela Agência Nacional de Águas (ANA) e pelo Departamento de Água e Energia Elétrica (DAEE).
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Licitação – A Sabesp já abriu licitação para comprar mais 19 conjuntos de bombas flutuantes e fazer um canal subaquático necessário para retirar mais água do volume morto do Cantareira e do Sistema Alto Tietê, segundo maior manancial que abastece a Grande São Paulo e que também passa por grave crise de estiagem. No início do mês, o governador Geraldo Alckmin (PSDB) havia negado que usaria mais uma cota da reserva profunda do Cantareira, embora a Sabesp já estivesse planejando retirar mais 100 bilhões de litros. Agora, a empresa quer aumentar em 16% a segunda cota do volume morto, que tem ao todo 400 bilhões de litros.
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Estimativas apontam que, se a vazão afluente, ou seja, a quantidade de água que chega aos reservatórios, for 50% abaixo da mínima histórica, e não houver redução no volume destinado ao abastecimento da população, a segunda cota do volume morto pode acabar ainda em dezembro deste ano, o que deixaria uma crise ainda mais grave para 2015. Em julho, por exemplo, a vazão média afluente está 68% abaixo da pior já registrada para o período. O mês será o mais seco da história do sistema, o que deve resultar em déficit de 51,5 bilhões de litros, ou 5,2% da capacidade. Na média, agosto e setembro costumam ser mais secos do que julho.
Risco – “O volume morto é como se fosse o cheque especial do banco. Mas, em vez de poupar e reduzir o consumo, o governo quer ampliar o limite para gastar mais. Essa fatura ficará mais cara em 2015, porque vamos começar o ano no negativo. A crise será ainda pior”, afirma o engenheiro e diretor do departamento de hidrologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Antonio Carlos Zuffo. Segundo ele, quanto mais fundo a Sabesp for buscar água, maior o risco de contaminação. “A dragagem está revolvendo muito lodo do fundo, onde ficam os poluentes, os metais pesados”, completa.
O uso da segunda cota, caso seja autorizado, também deve retardar o processo de recuperação do Cantareira. No início do mês, o jornal O Estado de S. Paulo revelou que uma análise estatística mostrou que a chance de o sistema acumular entre dezembro deste ano e abril de 2015 um volume de água suficiente para tirá-lo da crise após o término da primeira parte da reserva profunda era de apenas 25%.
A Sabesp informou em nota que “não houve um aumento na proposta de uso da segunda parte do volume morto” e que a “empresa segue em processo de avaliação para definir se o volume será de 100 e 116 bilhões de litros”. Segundo a concessionária, caberá aos órgãos reguladores decidirem sobre a proposta. O pedido precisa de aprovação da Agência Nacional de Águas (ANA), do governo federal, e do Departamento de Água e Energia Elétrica (DAEE) e da Companhia de Tecnologia de Saneamento Ambiental do Estado de São Paulo (Cetesb), ambos do governo paulista.
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1. Por que São Paulo vive hoje uma crise hídrica?
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(Mariana Pekin/VEJA)
O período tradicionalmente chuvoso, que vai de outubro a março, foi caracterizado por uma estiagem atípica entre 2013 e 2014 em São Paulo. A crise hídrica, contudo, não pode ser atribuída apenas aos humores de São Pedro: já em 2004 constava no documento da renovação da outorga do sistema à Sabesp, entregue pelo Departamento de Águas e Energia Elétrica (DAEE) do Estado, um alerta sobre a insuficiência do Cantareira, sobretudo diante da excessiva dependência do sistema. Os problemas deveriam ter sido sanados pela companhia. Um plano de estudos foi entregue dois anos depois ao DAEE pela Sabesp, mas não atendia completamente a requisição e um novo estudo ficou a cargo do Estado. Iniciado em 2008 e concluído em 2013, o Plano Diretor de Recursos Hídricos para a Macrometrópole Paulista aponta a necessidade de investimentos entre 4 bilhões e 10 bilhões de reais em novos reservatórios, meios de captação e transferência de água. Dessa lista, dois projetos a curto prazo atrasaram e só ficarão prontos em 2018 – caso do novo sistema produtor de águas São Lourenço.
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2. O Sistema Cantareira conseguirá se recuperar?
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(Mariana Pekin/VEJA)
Completamente, apenas a partir de 2016. O comitê anticrise que monitora a seca no sistema avalia que o manancial tem 25% de chance de se recuperar no próximo verão - o que significa repor o volume morto e elevar a capacidade a 37%. A meteorologista do Instituto Climatempo Bianca Lobo explica que se entre outubro deste ano e março de 2015 as chuvas caírem em índice considerado normal, o Sistema Cantareira pode até abrir o próximo outono com 39% de sua capacidade. Segundo ela, porém, o índice não serviria para garantir um inverno livre de preocupações em 2015. Ao longo do próximo ano o nível do Cantareira não deve ficar acima dos 39%, avalia. Somente a partir de janeiro de 2016 o sistema deve alcançar índices maiores - espera-se 58,4% em fevereiro. Para efetuar tais cálculos a meteorologista considera a média de chuvas esperada para São Paulo nos próximos meses, além do consumo médio de água no Estado. Leva-se em conta, ainda, que somente 30% da chuva prevista deve cair na região do Cantareira. Bianca salienta, contudo, que esses cálculos desconsideram a condição do solo seco, que funciona como uma esponja e retarda o abastecimento dos reservatórios. Ou seja, o cenário pode ser ainda mais preocupante para 2015.
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3. O que é o volume morto?
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(Vagner Campos/Divulgação/VEJA)
Trata-se da reserva inativa do manancial, utilizada somente em situações de emergência. Esse volume está localizado abaixo dos níveis de captação. Para bombear a água foi necessária a implantação de dezessete bombas, ao custo de 80 milhões de reais. Em situação normal, a finalidade dessa parcela do manancial - de 400 bilhões de litros - é o acúmulo de sedimentos. Segundo o professor da Escola de Engenharia da USP em São Carlos João Luiz Boccia Brandão, a oxigenação da água nesse nível é muito baixa.
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4. Essa água é boa para o consumo?
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(Vagner Campos/Divulgação/VEJA)
Desde que passe por tratamento especial, afirmam especialistas. "Há necessidade de reavaliação do tratamento e prováveis ajustes operacionais”, explica o professor de engenharia ambiental da Unesp de Rio Claro Rodrigo Moruzzi. Para a professora da USP Alexandra Suhogusoff seria temerário que a água não atendesse aos "padrões de potabilidade". Moruzzi afirma que é preciso uma alteração na aplicação dos insumos - como cloro, sulfato de alumínio, entre outras substâncias aplicadas à água. Outra técnica de tratamento reforçado seria a dupla filtração dessa água. Já a Sabesp informa que segue realizando o tratamento convencional da água, sem alterações. E afirma: informações sobre a necessidade de tratamento especial dessa água são apenas boatos. No tratamento comum, a água passa por oito etapas: pré-cloração, pré-alcalinização, coagulação, floculação, decantação, filtração, cloração e fluoretação.
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5. Até quando o Cantareira pode contar com o volume morto?
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(Mariana Pekin/VEJA)
Se as projeções mais pessimistas confirmarem, o volume morto do manancial acaba entre outubro e novembro. Nesse período, a gestão Geraldo Alckmin (PSDB) espera que as chuvas voltem a cair no manancial, normalizando os reservatórios. Desta forma, afirma a Sabesp, o abastecimento de água na Grande São Paulo estará garantido até meados de março de 2015. Não há, até aqui, um Plano C da Sabesp caso as chuvas não venham.
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6. Como estão os demais sistemas que abastecem o Estado?
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(Divulgação/DAEE/VEJA)
O sistema Alto Tietê, que abastece cerca de 4 milhões de pessoas na Grande São Paulo, também apresenta baixo índice pluviométrico, queda no nível das represas e alto risco de esgotamento neste ano. A situação se agravou porque parte da água do manancial passou a abastecer o Cantareira. Além disso, bairros da Zona Leste da cidade de São Paulo, normalmente é atendidos pelo Cantareira, passaram a receber água do Alto Tietê no início de dezembro passado. O governo do Estado anunciou em julho que também vai utilizar 25 bilhões de litros do volume morto do Alto Tietê, o que deve garantir menos de um mês de sobrevida ao manancial. São Paulo conta ainda com outros quatro complexos: Guarapiranga, Rio Grande, Rio Claro e Alto Cotia. Juntos, respondem por 34,5% do abastecimento do Estado. O Alto Tietê representa 20,5% e o Cantareira, 45%. Alckmin tem buscado como opção para abastecer o Estado o remanejamento de água do rio Paraíba do Sul. A disputa acabou virando uma queda de braço entre os governo de São Paulo e Rio de Janeiro - e nada de significativo foi feito até aqui. O Paraíba do Sul é interestadual e fornece água para o Rio de Janeiro, Minas Gerais e tem sua nascente no Estado de São Paulo, na Serra da Bocaina.
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7. São Paulo corre o risco de ficar sem água?
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(Thinkstock/VEJA)
Sim, avaliam os especialistas ouvidos pelo site de VEJA. A situação no Cantareira coloca em risco as demais bacias do Estado, que podem entrar em colapso dado o aumento da demanda - o sistema Alto Tietê, por exemplo, passará a contar em breve com água captada do volume morto. Além disso, as previsões para o próximo período chuvoso não podem assegurar que o volume de água será suficiente para aliviar os mananciais. "Alternativas deveriam ter sido implantadas quando a situação não era tão grave, a exemplo do racionamento", avalia Moruzzi.
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8. Há alternativas para sanar essa crise?
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(Vagner Campos/Divulgação/VEJA)
Segundo o professor Rodrigo Moruzzi, o racionamento deve ser levado em consideração pelo governo. “O controle da demanda ainda é uma alternativa para minimizar o declínio dos níveis reservados”, avalia. A longo prazo, uma medida já explorada com sucesso em outros países é o reuso da água. Atualmente, um projeto em parceria entre a Sabesp e a Odebretch Ambiental, o quapolo Ambiental S.A., visa a destinação de água de reúso para fins industriais, minimizando o desperdício de água potável. A construção de novos reservatórios, como o sistema produtor de água São Lourenço, que ficará pronto em 2018, também é opção a longo prazo.
(Com Estadão Conteúdo)