O Brasil é um país racista. Não há como abordar essa questão nem discutir soluções para todos os problemas decorrentes dela sem que se assuma isso de forma clara e direta. A quem nega a urgência desse debate, três episódios ocorridos nos últimos dias mostram como é importante colocar o tema no topo da lista de prioridades do país. Em Valinhos, no interior de São Paulo, o motoboy de aplicativo Matheus Pires foi hostilizado pelo morador de um condomínio onde foi realizar uma entrega. “Você tem inveja disso aqui”, gritou o agressor, branco, enquanto apontava para a cor de sua pele. No Rio de Janeiro, outro jovem negro, também chamado Matheus, foi espancado por dois policiais militares na loja Renner, do shopping Ilha Plaza. Matheus apenas tentava trocar um relógio que havia comprado em oito parcelas para dar de presente no Dia dos Pais. Por ser negro, os agressores achavam que ele só podia estar ali para roubar algo. Na capital paulista, outro caso terminou em tragédia. Rogério Júnior pegou a moto de um amigo emprestada para comemorar o aniversário de 19 anos. Foi perseguido e baleado por dois policiais que, em depoimento, disseram ter atirado por acreditar que ele estava armado. Não havia arma alguma. Rogério agonizou na calçada antes de morrer no hospital. Os guardas foram afastados e serão investigados.
São três exemplos basilares de como o racismo opera no Brasil. Casos em que se manifestam não só o preconceito e a injúria racial, mas também a existência de uma estrutura que acarreta a violência policial, a desigualdade social e as destoantes oportunidades reservadas a brancos e negros no país. A novidade é que, finalmente, episódios do tipo começam a gerar uma reação proporcional dentro da sociedade, na forma de repúdio e do aumento da consciência coletiva a respeito do fato de que o racismo existe, está arraigado no país e precisa ser combatido de forma urgente. Por si só, isso não resolve nada, claro, mas o diagnóstico é o primeiro passo em busca de uma solução. O nível de reconhecimento do tamanho do problema foi quantificado por um estudo exclusivo encomendado por VEJA ao Instituto Paraná Pesquisas. Segundo ele, 61% dos entrevistados admitiram que o Brasil é um país racista, enquanto 34% negaram o problema. Em certa medida, é um dado histórico se for considerado que até pouco tempo atrás era difundida a ideia de que vivíamos sob a égide de uma “democracia racial”, em que todas as raças confraternizavam em harmonia e gozavam dos mesmos direitos. Por décadas e décadas, a cortina de fumaça escondeu esse grave problema.
A percepção mais recente materializou-se nas ruas pelo movimento Vidas Negras Importam (a versão local do Black Lives Matter, que desde 2013 tem liderado nos Estados Unidos os protestos antirracistas contra a violência policial). Por muito tempo, o entendimento geral da população foi de que o racismo consistia na mera aversão de brancos contra negros, algo concentrado nas relações interpessoais. Intelectuais do movimento negro explicitaram, no entanto, como o problema não se limita a essa camada superficial, mas sim a um enorme conjunto de disparidades sociais em relação aos brancos. O preconceito, na verdade, se revela em números.
O Brasil, onde 56% da população se identifica como pretos ou pardos, é uma nação com desigualdades abissais na comparação com posições ocupadas por brancos. Só 4,7% dos cargos executivos das 500 maiores empresas do país são preenchidos por negros, enquanto eles representam 75% dos mortos pela polícia e 62% dos presos. Não é por acaso que a pandemia de Covid-19 matou 55% dos negros e 38% dos brancos que foram internados. Fazem parte dessa estrutura racista as péssimas condições sanitárias dos bairros mais pobres e a concentração de um número maior de negros nessas regiões. “Comportamentos individuais e processos institucionais são derivados de uma sociedade cujo racismo é regra, e não exceção”, escreveu Silvio Luiz de Almeida, professor de direito político e econômico na Universidade Mackenzie, em seu livro Racismo Estrutural, de 2018.
Tal entendimento agora ganha fôlego inédito nas discussões dentro da sociedade brasileira. Nos números colhidos pelo Paraná Pesquisas, chama atenção também que 67% das mulheres admitem o problema, contra 54% dos homens, e que, quanto maior o grau de escolaridade dos entrevistados, maior é a porcentagem daqueles que reconhecem o racismo. Em outra pergunta, os mais jovens se mostram mais capazes de identificar um ato de discriminação racial: 44% das pessoas entre 25 e 35 anos disseram ter presenciado tal atitude, contra 34% dos que têm 60 anos ou mais. “São números expressivos sobre o reconhecimento do racismo, mas, para que a mudança seja sustentável, há muito trabalho pela frente”, diz Jurema Werneck, diretora executiva da ONG Anistia Internacional no Brasil.
O trabalho, de fato, é longo. Em maio, nos Estados Unidos, quando surgiu na internet o vídeo em que um policial esmagava o pescoço de George Floyd até a morte, milhares de pessoas deixaram suas casas em plena pandemia para protestar por uma reforma na polícia americana. A pressão e a magnitude dos atos forçaram congressistas, ícones do universo pop e marcas comerciais a se posicionar sobre o tema. O movimento se alastrou para outros países e serviu de inspiração também para manifestações no Brasil, ainda que bastante tímidas quando comparadas às da terra de George Floyd. Equivoca-se, no entanto, quem usa a realidade americana para afirmar que há conformismo por parte dos negros brasileiros e da sociedade como um todo diante dessa questão. “As pessoas estão nas ruas, estão denunciando o tempo todo. Mas a invisibilidade dessa agenda faz parte da estrutura do racismo”, afirma Mário Medeiros, professor do Departamento de Sociologia da Unicamp. Não são raras as manifestações populares contra assassinatos de jovens negros, como foi o caso de Rogério Júnior, que ficam restritas às periferias das cidades, onde geralmente moram as vítimas. Os parentes e amigos de Rogério fizeram um ato na Zona Sul de São Paulo em protesto contra a sua morte.
O chamado para enfrentar o racismo estrutural, que já estava presente fazia décadas nas obras e pensamentos difundidos por intelectuais, ganhou impulso e visibilidade dentro da babel de discussões da internet. “Depois da pandemia, a grande pauta de 2020 é a luta antirracista”, diz Mário Medeiros. Nesse contexto, as redes sociais transformaram o ambiente de discussão das causas políticas e sociais no país. Em abril, por meio da vigilância e da pressão do ativismo virtual, uma peça do governo federal fazendo publicidade do programa Pró-Brasil com uma foto de crianças que parecia ter sido tirada de um banco de imagens da Suécia mereceu imediato repúdio dos internautas. O governo reclamou de um tipo de ativismo exagerado, mas acabou tirando a peça do ar em pouco tempo.
Essas transformações recentes na consciência brasileira passam ainda pela adoção de políticas públicas fundamentais para combater o problema. Um marco desse avanço foram as cotas raciais implementadas nas universidades. Instituído como lei em 2012, esse instrumento de reparação histórica impulsionou a formação de intelectuais negros em áreas que antes eram ocupadas em sua totalidade por brancos, como é o caso da economia, do direito, da medicina e da sociologia. Um estudo formulado pelos pesquisadores Adriano Senkevics e Ursula Mello para o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira mostra que houve aumento de 39% de pretos, pardos e indígenas nas universidades entre 2012 e 2016. Não é de surpreender, portanto, que as vozes de acadêmicos e de artistas negros venham alcançando cada vez mais pessoas. Entre tantas correntes distintas do movimento negro e pensadores históricos que estão em plena atividade, um nome que se popularizou no Brasil e no exterior foi o de Djamila Ribeiro. A filósofa de 40 anos é autora dos livros Lugar de Fala e Quem Tem Medo do Feminismo Negro?. Sua principal linha de pensamento se concentra na diferenciação de objetivos que o feminismo se propõe a alcançar a partir do reconhecimento de privilégios que mulheres brancas detêm diante das negras.
Se por um lado cresceu no país o entendimento sobre as consequências cruéis do racismo, por outro, os problemas decorrentes dessa estrutura vigente estão longe do fim. Também causou horror na última semana a história de Kate Belintani, uma mulher branca do interior de São Paulo que perdeu a guarda da filha de 12 anos após uma denúncia anônima acusá-la, sem provas, de abuso e maus-tratos. O motivo: a garota havia raspado a cabeça ao participar de um ritual de iniciação no candomblé, uma religião de matriz africana. Já em Curitiba, a juíza Inês Marchalek Zarpelon afirmou três vezes numa sentença que emitiu contra um réu primário que ele era “seguramente integrante do grupo criminoso, em razão da sua raça”. Nem sempre as agressões são tão explícitas. “Eu não sofro racismo somente se me chamarem de ‘macaca’. O racismo acontece por microagressões e micro-humilhações diárias”, afirma a francesa Alexandra Loras, que atualmente trabalha como consultora de gestão corporativa. Filha de um imigrante da Gâmbia, Loras é ex-consulesa da França em São Paulo e cansou de ser confundida com babá em um clube de elite da cidade. Atualmente, é especializada em contratar e desenvolver a carreira de profissionais negros dentro de empresas. Já ajudou a contratar 458 negros em multinacionais.
A ideia de que o Brasil pulou da escravidão para uma “democracia racial” foi tão difundida que a inclusão étnico-racial só entrou na pauta das empresas brasileiras depois que as áreas de recursos humanos já tratavam da inclusão de mulheres, pessoas com deficiência e homossexuais. “Grupos minorizados são aqueles que não são minorias em termos populacionais, mas que enfrentam barreiras sociais que outros grupos não têm de enfrentar e, por isso, não estão representados em espaços de poder”, explica Margareth Goldenberg, consultora de responsabilidade social corporativa. Os negros, hoje, representam 35% do quadro funcional das empresas, mas apenas 4,7% das posições de liderança, segundo estudo do Instituto Ethos. “Esse fosso civilizatório deixado pela escravidão não será reparado naturalmente”, diz Margareth.
Além de medidas de combate ao racismo, é preciso também que haja mobilização permanente para evitar retrocessos. Na Fundação Palmares, órgão subordinado à Secretaria da Cultura, o presidente Sérgio Camargo, um homem negro e fiel apoiador de Bolsonaro, tem promovido sucessivas políticas de desmonte e de enfrentamento ao movimento negro, chamado por ele de “escória maldita”. Para 2022 está marcada uma revisão da Lei das Cotas pelo Congresso, o que poderá ampliar ou restringir o acesso dos beneficiados às universidades. Na opinião do professor Adilson Moreira, doutor em direito comparado pela Universidade Harvard, partidos políticos precisam entender a seriedade do combate ao racismo e desenvolver em seus programas de governo medidas que ataquem o problema diretamente. “Todos dizem que é um problema de classe social e que, uma vez eliminada a pobreza, o racismo também terá fim. Essa turma só diverge na forma, mas sempre parte do pressuposto equivocado de que políticas universalistas resolvem a questão”, afirma. Nas instâncias políticas, a falta de representatividade entre os eleitos prejudica a formação de um combate mais propositivo. Difícil, no entanto, será silenciar ou ignorar a parcela da população que está atenta ao tema, seja pressionando autoridades a reparar iniquidades históricas, seja trabalhando para manter a sociedade em alerta contra a perda de conquistas já adquiridas. Tudo indica que essa mobilização tende a ficar mais forte e que os brasileiros estão dispostos a encarar essa vergonhosa chaga nacional.
Colaborou Roberta Paduan
Publicado em VEJA de 19 de agosto de 2020, edição nº 2700