Enquanto as autoridades do Rio de Janeiro fazem discursos contra a irresponsabilidade de seus antecessores em relação à favelização da cidade, os vereadores cariocas estão trabalhando no enredo de uma nova tragédia urbana. Existem em tramitação na Câmara 85 projetos que garantem tratamento diferenciado a áreas ocupadas por favelas e loteamentos, com vistas a regularização fundiária e urbanização. Se aprovados, esses projetos, que criam áreas chamadas de “especial interesse social”, darão chancela legal a centenas de ocupações irregulares. Garantirão, portanto, que não haverá remoções nesses locais, e que a área será urbanizada.
Cada área de especial interesse social cria uma série de compromissos que o poder público só poderia assumir depois de analisar o impacto social, econômico e urbanístico de tais assentamentos. Mas a aprovação dessas leis acontece por maioria simples, depois de pouca ou nenhuma discussão. É um entrave a qualquer planejamento de longo prazo e um campo fantástico para a ação de políticos clientelistas, que têm seus votos garantidos pela pobreza e pelo atraso.
Trata-se de um poderoso combustível para a indústria da favelização. Desde 1993, quando foi editado o Plano Diretor da cidade, foram aprovadas 88 leis relativas à criação de áreas de especial interesse social. “Estamos produzindo a tragédia do futuro”, diz a vereadora Andréa Gouvêa Vieira (PSDB), que junto com o vereador Paulo Pinheiro (PPS), apresentou no ano passado projeto de emenda à Lei Orgânica do Município para passar à categoria de lei complementar qualquer matéria urbanística que implique na criação dessas áreas. Com isso, a aprovação passa a ser por maioria absoluta, o que pelo menos obriga a haver alguma discussão. Resta saber se os bravos vereadores vão querer botar um ponto final em mais essa fonte de favores e votos.
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Leia também uma análise do escritor José Lins do Rego sobre as favelas no Rio:
O ano era 1951, e o escritor José Lins do Rego morava numa casa vizinha à Lagoa Rodrigo de Freitas, ao lado do Jockey Clube. Ao sair para um passeio, deparou-se com um movimento inesperado. “Vejo, então, o que não queria ver. Era o povo do morro que descera com os seus barracos na cabeça para enfincá-los ali. Uma cidade, de lata, de barro, de capim, de lama, de tábuas, surgia, como por encanto, pegado às paredes altas da cidadela dos cavalos ricos”, descreveu Lins do Rego com seu estilo desabrido em crônica publicada no jornal O Globo. O final do texto traz um apelo que, lido 59 anos depois, ganha força de profecia. “Eu aconselharia o Sr. Prefeito a ver a cidade nova que vem nascendo.”