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O colecionador de pedaços de gente

Pelos cálculos do médico patologista Luiz Celso Mattosinho França, guardião do acervo, seria possível montar cinco mosaicos de corpos inteiros

Por Branca Nunes
25 set 2011, 17h38

A história de amor entre as células e Mattosinho começou há mais de seis décadas, época em que o médico, hoje com 80 anos, trabalhou no Colégio Anglo Latino como auxiliar de ensino em biologia do pesquisador Isaias Raw

Num ponto localizado entre as serras do Mar, da Bocaina e da Mantiqueira, a pouco mais de 30 quilômetros de Cunha, existe algo muito mais impressionante que a paisagem visível formada por pinheiros, paredões de montanhas no horizonte, e pastos de gado leiteiro. A última cidade do estado de São Paulo antes da estradinha de terra e pedregulhos, margeada por um precipício que fará os motoristas suarem frio antes de chegarem a Paraty, no Rio de Janeiro, também abriga 237.026 pedaços de cerca de três milímetros cada um de pele humana, 4.684 partes de cérebros, 7.995 de bocas, 3.715 de línguas, 9.648 lasquinhas de ossos, 1.004 pedacinhos de corações, 69.899 de estômagos, 1.922 de olhos e mais 851.487 partes de outros 111 órgãos.

São 1.187.380 pequenos pedaços de gente. Pelos cálculos do médico patologista Luiz Celso Mattosinho França, guardião do acervo, seria possível montar cinco mosaicos de corpos inteiros. Cada um desses filetes, preservados no interior de retângulos de parafina, faz parte da coleção que começou a ser montada em 1961, quando ele inaugurou o Laboratório Mattosinho de patologia clínica, um dos mais respeitados do Brasil, e foi concluída em 2001, depois da semi-aposentadoria.

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Durante 50 anos, Mattosinho guardou tudo que chegou às suas mãos para que fossem descobertos tumores, úlceras, inflamações ou qualquer outro problema. “A lei manda preservar o material por cinco anos”, conta o patologista. “Mas eu tenho um defeito. Nunca consegui jogar nada fora”.

A frase talvez seja um mantra que encontrou para tornar menos estranho a olhares comuns o hábito de colecionar tecidos humanos. Mas o fato é que esse homem alto, de rosto comprido, braços longos, barba e cabelos brancos, não consegue lembrar-se de outra coisa que tenha armazenado com tanto amor e preservado durante toda a vida.

Prólogo – A história de amor entre as células e Mattosinho começou há mais de seis décadas, época em que o médico, hoje com 80 anos, trabalhou no Colégio Anglo Latino como auxiliar de ensino em biologia do pesquisador Isaias Raw, ex-presidente da Fundação Butantã. Mattosinho era o responsável por preparar as lâminas que seriam estudadas pelos alunos no microscópio.

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A mudança dos bichos e plantas para os seres humanos deu-se em 1948, quando ele ingressou na faculdade de medicina da Universidade de São Paulo. Pouco depois, decidido a terminar nos Estados Unidos a residência que fazia no Hospital das Clínicas de São Paulo, conseguiu um emprego de médico legista da polícia paulista. “Isso dava bastante dinheiro”, contou, para espanto dos profissionais que se aventuram na área hoje em dia.

Entre os cadáveres que nessa época passaram pelas suas mãos está o de Gabriel Quadros, pai de Jânio, então governador de São Paulo. Gabriel foi assassinado pelo marido de sua amante, que o surpreendeu no quarto da casa. “Foi uma autópsia difícil”, lembra. “Como ele foi alvejado por uma saraivada de tiros e morreu girando o corpo para tentar defender-se, havia inúmeras perfurações”.

Depois de quatro anos nos Estados Unidos, onde estudou no Memorial Hospital de Nova York, voltou ao Brasil, abriu o laboratório particular e começou a trabalhar também no Hospital do Servidor Público de São Paulo. Além do início da coleção, o período marcou a luta de Dr. Mattosinho para tirar dos bastidores os médicos patologistas brasileiros. “Esse tipo de especialista não conhece os pacientes, mas suas células”, diz. “Embora apareçam pouco, seu trabalho é essencial para o diagnóstico da doença”.

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A pesquisa – Aparentemente sem serventia para grande parte da população, o arquivo do Dr. Mattosinho é um tesouro da medicina preservado nos dois galpões que ergueu em sua fazenda exclusivamente para abrigar o material. “É um acervo que guarda 50 anos de história”, esclarece David Braga Junior, médico do Hospital do Servidor Público Estadual de São Paulo. “Entre as diversas pesquisas que podem ser feitas, é possível saber como as doenças evoluíram e como foram tratadas ao longo das últimas cinco décadas”.

Nos estudos mais acurados, um médico poderia determinar, por exemplo, se os casos de câncer de pulmão aumentaram na mesma proporção que os índices de poluição na cidade de São Paulo. “Um estudante entra para a faculdade deslumbrado com as técnicas modernas, mas ele precisa saber que, daqui a 30 anos, elas serão tão obsoletas quanto eram as de 30 anos atrás”, observa Braga. “Isso ensina a ter humildade. Se bem estudado, existe um Prêmio Nobel escondido entre aquelas milhares de plaquetas”.

Carlos Renato Almeida Melo, presidente da Sociedade Brasileira de Patologia, explica por que o acervo é tão relevante. “Com as técnicas modernas de biologia molecular se pode descobrir a composição genética de um vírus, como o da gripe espanhola ou o da aids”, informa. “Também podemos saber se ele sofreu alguma mutação com o tempo e quais são as doenças similares”.

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Foi estudando um material semelhante ao guardado por Mattosinho que Almeida Melo pôde constatar que as doenças que atingem os brasileiros hoje estão mais parecidas com as desenvolvidas por moradores de países do primeiro mundo do que eram há algumas décadas. O médico patologista Ricardo Artigiane Neto também chama a atenção para o material genético: “É possível extrair o DNA dos tecidos”, revela. “Isso abre espaço para estudos em outros campos da medicina”.

A única coleção com dimensões semelhantes à de Mattosinho no Brasil é a do Hospital do Servidor Público de São Paulo, com 500.000 amostras. Nos Estados Unidos, o Armed Forces Institute of Pathology guarda milhares de exemplares desde sua fundação, em 1862. “O ideal seria que o material de Mattosinho estivesse em poder de algum órgão público”, acredita Almeida Melo. “É o maior acervo privado de patologia do mundo”. Somado à falta de recursos – preparar o material para pesquisas mais aprofundadas é relativamente caro -, o desinteresse de autoridades políticas e universitárias diz respeito à falta de espaço.

Para armazenar as amostras do Armed Forces, foi construído um prédio exclusivamente para a função. Mattosinho consegue dinheiro para manter e digitalizar seu acervo com a criação de 500 cabeças de gado girolando e uma fábrica que produz quase duas toneladas de queijo mussarela por dia, vendidos em toda a região da Serra da Bocaina.

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Os laticínios – Mattosinho, que é casado pela segunda vez, comprou a fazenda em Cunha para plantar eucalipto com incentivo governamental e aumentar a renda. Já estava encantado pelo lugar ao descobrir que o benefício estatal só valia de Minas Gerais para o norte.

A fábrica Funky, apelido de um de seus três filhos, hoje produz iogurte de morango e coco, manteiga, queijo fresco e ricota – mas o forte é mesmo a mussarela. “Com o dinheiro da fábrica, consigo manter a fazenda e pagar os funcionários que cuidam do acervo”, afirma Mattozinho, que só emprega moradores locais. Além das dezenas de pessoas que trabalham na fábrica de laticínios, outras seis participaram da catalogação e da digitalização do arquivo de patologia.

Ex-assistente do pároco da região, Alceu Fagundes continua por lá. Agora ele é responsável por fotografar os 1.187.380 pedidos médicos que acompanham os 1.187.380 retângulos de parafina, que acompanham as 1.187.380 lâminas que um dia foram analisadas num microscópio (todas as amostras do arquivo aparecem nesses três formatos). As fotos são arquivadas em DVDs de acordo com o ano. Ana Maria Sampaio era auxiliar de enfermagem quando foi contratada. Seis anos depois, acredita que aprendeu mais sobre medicina do que nas décadas em que trabalhou no posto de saúde da cidade. O programa utilizado na catalogação foi exclusivamente desenvolvido por José Adenildo da Silva, o Pompeo, programador de um supermercado de Guaratinguetá.

O legado – A cada mês, o site no qual Mattosinho disponibiliza todas as informações de seu acervo recebe cerca de 200 visitantes únicos que acessam 1,1 gigabytes de dados. A página também é frequentada por americanos, franceses, italianos, russos e alemães. Semanalmente, médicos e pesquisadores vão até a fazenda para conhecer a coleção pessoalmente.

Entre uma cervejinha e outra, prazer que se concede nos fins de semana – todos passados ao lado de sua grande paixão, as células – Mattosinho, um ateu que construiu uma capela em suas terras e tem a casa repleta de crucifixos e imagens de santos, não sabe o que será feito desse arquivo quando morrer. Só sabe que esse é o item mais precioso de seu testamento e que não ficará como herança para a mulher, nem para os filhos. “É uma dívida que eu tenho com as novas gerações”.

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