Fotos às vésperas de desabamento revelam estrutura frágil
Imagens obtidas pelo site de VEJA mostram interior do prédio que ruiu e matou dez pessoas; engenheiros veem sinais de que estrutura não suportaria peso
Fotografias feitas por operários dentro do prédio que desabou e matou dez pessoas em São Paulo revelaram, na avaliação de engenheiros, que a estrutura aparentava fragilidade e que não suportaria cargas pesadas. O site de VEJA teve acesso a fotos inéditas tiradas às vésperas da tragédia, que fazem parte do inquérito policial sobre o colapso do edifício na Avenida Mateo Bei, em São Mateus, na Zona Leste. O desabamento do prédio comercial de dois andares, no dia 27 de agosto, também deixou 26 feridos. A Polícia Civil ainda não terminou a investigação para determinar as causas e os responsáveis. A obra havia sido multada duas vezes e estava embargada.
Esta é a segunda série de fotografias que revelam o interior da obra. A primeira, mostrava o terreno na fase inicial da construção. As dez novas imagens foram registradas entre os dias 3 e 13 de agosto, por funcionários da Salvatta Engenharia, que fazia o acabamento na obra. Eles tiraram as fotos de forma amadora, com um celular Motorola XT320. À polícia, alguns relataram que a estrutura era fraca e que pensaram em parar a obra em 24 de agosto – quatro dias antes do colapso. O que não ocorreu a tempo de poupar vidas.
Dois especialistas em Engenharia Diagnóstica em Edificações comentaram as fotos a pedido da reportagem do site de VEJA. Jerônimo Cabral Fagundes Neto e Marco Antônio Gullo, ambos diretores do Instituto de Engenharia, consideraram que as imagens têm valor pericial.
Infográfico
As fotos mostram detalhes do térreo e do primeiro piso – embora a planta original previsse uma edificação térrea, o prédio que ruiu tinha dois pavimentos. Nas imagens, é possível ver a dimensão do galpão comercial no térreo. O piso ainda estava por fazer, mas havia três grandes portas de ferro – que ficavam na fachada, na Avenida Mateo Bei. Um operário aparece dentro de uma ampla escavação, onde seria feito um reservatório, de acordo com fontes ligadas à investigação. Para Cabral e Gullo, a escavação é ampla demais para que fosse apenas uma sondagem ou inspeção de solo.
No andar superior, operários construíam paredes em alvenaria – e para isso, mais de 2 500 tijolos estavam armazenados neste piso. As paredes do salão superior estavam pintadas de branco e com espaços abertos para instalação de janelas. Outras paredes divisórias internas, que estavam sendo levantadas, separariam cômodos para vestiários e refeitório. Os funcionários já haviam prendido ao teto as tubulações do sistema de ar-condicionado.
As fotos evidenciam que a estrutura do prédio era baseada em um sistema com laje nervurada – isto é, com vigotas de concreto “recheadas” de isopor no meio – e não maciça de concreto, além de colunas “esbeltas”, ou seja, pilares redondos e finos. Os especialistas afirmaram que existem versões deste sistema, consagrado na engenharia civil, que suportam pesos maiores – as lajes colmeia. Mas que, em geral, lajes nervuradas e colunas “magras” são projetadas para cargas leves e para baratear custos, com economia de material.
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Por causa dos indícios de sobrecarga no andar superior (tijolos e toras de eucalipto armazenadas e paredes construídas), os engenheiros concordaram com a suspeita dos operários: de que havia risco porque a estrutura não aguentaria o peso.
“Essa não é uma laje empregada para [sustentar] grandes cargas. A nervura é estreita. As colunas também não são robustas, são colunas esbeltas [finas]”, disse Gullo. “Eventualmente, a estrutura pode estar trabalhando no limite [de peso]. Mas sem folga. Não quero dizer que é um erro, mas é um tipo de laje usada para pequenas cargas em cima”, completou.
Cabral e Gullo ressalvaram, porém, que somente cálculos com base no projeto de engenharia, na quantidade de material estocado no piso superior e em análises de laboratório, além de visitas in loco, poderiam levar às causas do colapso com precisão.
“Temos poucos elementos para condenar ou absolver. Não tem o que condenar se tudo estiver dentro da capacidade de carga projetada”, disse Cabral. “Mas onde tem fumaça tem fogo.”
Ao analisar a primeira série de fotografias, com detalhes das fundações de sustentação do edifício, os engenheiros ressaltaram que os materiais e métodos de construção usados na obra são usuais no ramo. “Aparentemente é uma fundação correta”, disse Gullo. “Mas eu me atreveria a dizer que mais que dois, três pavimentos, seria muito. Não suportaria.”
Eles explicaram ser comum que, mesmo com previsão de apenas um andar na planta arquitetônica, o projeto de engenharia tenha fundações mais fortes, capazes de suportar outros pavimentos, principalmente em áreas comerciais – mais suscetíveis a uma ampliação futura na altura do edifício.
Perícia – Cabral explicou que a perícia pode seguir três caminhos para desvendar o motivo do colapso. Verificar erros de cálculo da capacidade de carga (quanto peso as vigas e colunas de sustentação poderiam suportar e quanto foi colocado sobre elas), aferir a qualidade e adequação do material usado na obra (como determinar a espessura das ferragens e traços do concreto – a composição da mistura de pedra, areia, cimento e água) e desvendar eventuais falhas de execução (como pilares que deixam de ser completamente preenchidos por concreto e ficam mais frágeis – as chamadas “bicheiras”). “É difícil ser uma coisa só. Geralmente é uma soma de fatores”, afirmou Cabral.
“A primeira etapa é medir tudo, ver a capacidade de carga. Depois, com um olho mais clínico, ver os testemunhos que sobraram, ver se tem alguma bicheira, ver a ferragem dos pilares, se a espessura é a que estava no projeto do calculista”, explicou Gullo.
“Tudo o que vemos aí não é para grandes cargas. Com esses pilares, eu diria que não daria para fazer um terceiro pavimento. Mal aguentou um. Tanto é que caiu. Mas sem os cálculos não dá para dizer se suportaria esse”, completou o engenheiro.
Pela análise das fotos, eles não descartariam nenhuma hipótese de investigação: “Visualmente não dá para descartar um subdimensionamento estrutural, problema de material ou erro de cálculo. Também não dá para descartar as fundações, porque não sabemos a profundidade e algum recalque pode ter partido uma viga. Aí o sistema todo entra em colapso”, explica Gullo.
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A reportagem procurou peritos que estão a cargo da investigação no núcleo de Engenharia do Instituto de Criminalística (IC), mas a Secretaria Estadual da Segurança Pública (SSP) disse que eles não se pronunciariam sobre o desabamento até a conclusão dos laudos. O prazo inicial de trinta dias termina na sexta-feira, quando a tragédia completa um mês, mas pode ser prorrogado.
Também procurado, o Conselho Regional de Engenharia e Agronomia (CREA-SP) preferiu não comentar as imagens. Os engenheiros envolvidos na obra devem ser ouvidos na Câmara Especializa em Engenharia Civil do conselho – que se reúne uma vez por mês. O CREA-SP ainda não agendou, no entanto, a data a audiência.
Indenização – O Ministério Público do Trabalho (MPT) diz que os engenheiros responsáveis tinham conhecimento das fragilidades da edificação, mas que, mesmo cientes do risco, mantiveram os funcionários no local. A procuradoria do Trabalho argumenta que a obra chegara a ser paralisada no pavimento superior, mas que funcionários foram ainda obrigados a subir para armazenar tijolos e toras de madeira. Além disso, tiveram de manter as atividades como limpeza no térreo – e acabaram vitimados pela queda das lajes.
O MPT moverá uma ação civil por responsabilidade trabalhista objetiva a fim de reparar financeiramente os operários feridos e as famílias dos dez mortos, por “condições degradantes” e “falta de estrutura” e de segurança coletiva. Os procuradores do MPT apuram o salário pago aos trabalhadores e se eles recebiam alguma remuneração por fora, para fundamentar o pedido de indenização. Os alvos da ação são a Salvatta Engenharia (contratada para reformar o edifício e empregador dos operários mortos), o magazine Torra Torra (que abriria uma loja no prédio e havia contratado a Salvatta) e a JAMS Empreendimentos Agrícolas (empresa dona do imóvel e gerenciada pelo comerciante Mostafá Abdallah Mustafá).
O delegado responsável pelo inquérito, Luiz Carlos Uzelin – titular do 49° DP – informou, em nota, que dezoito pessoas tinham prestado depoimento até esta sexta-feira. Uzelin também disse ter solicitado “contratos e documentos da empresa de engenharia que realizava a obra para serem analisados”. “Ainda há pessoas para serem ouvidas e os engenheiros averiguados prestarão esclarecimentos. As investigações continuam”, disse por nota da SSP, sem dar prazo para a conclusão do inquérito.
Outro lado – Em nota, a Salvatta Engenharia afirma que não causou o desabamento e que iniciou o acabamento da obra certa de que a construção havia sido feita com “observância de projetos estruturais devidamente aprovados e mediante alvarás”. A empresa afirma que as vítimas “entraram em uma verdadeira armadilha”, edificada com a “enorme negligência dos proprietários que construíram o imóvel”. A empresa também culpa a Prefeitura de São Paulo de ter sido omissa na fiscalização.
A Salvatta afirma que não havia “nenhuma suspeita” de que o prédio pudesse desabar, e garante que “jamais exporia seus colaboradores a risco”. A empresa aponta como “única explicação” para o desabamento “a movimentação do solo, por falhas de dimensionamento da profundidade das fundações”. Segundo a empresa, as obras realizadas parcialmente por ela não causaram nenhum tipo de interferência na estrutura da construção. Na nota, a empresa confirma que chegou a interromper os trabalhos porque não recebeu do proprietário do terreno as plantas estruturais do prédio, nem do magazine Torra Torra o dimensionamento do futuro estoque da loja – que afirma ter solicitado.
A assessoria de imprensa da Torra Torra não respondeu os questionamentos da reportagem. O advogado Edilson Carlos dos Santos, que trabalha para o dono do imóvel e da JAMS Empreendimentos, Mostafá Abdallah Mustafá, não atendeu as ligações. Mustafá não retornou recado deixado por telefone no seu escritório.