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Eu continuo militar

Maria Luiza da Silva, cabo da Força Aérea, 58 anos, teve de se aposentar quando se assumiu trans

Por Maria Luiza da Silva
Atualizado em 12 jul 2019, 16h07 - Publicado em 17 Maio 2019, 07h00

Servi na Força Aérea Brasileira durante 22 anos, sem sofrer nenhuma punição. Fui condecorado pelo serviço prestado e pela função de instrutor, ministrando aulas sobre atendimento das aeronaves em solo. Em 2000, aposentaram-me forçosamente. Tudo começou dois anos antes, em 1998, quando relatei à FAB o desejo da minha vida: deixar o gênero masculino para ser mulher.

Não sei quando percebi que estava no gênero feminino, para mim sempre foi algo natural. Na pré-adolescência, meus pais notaram que eu era diferente. Meu corpo evoluía como trans. Eu não tomava forma masculina. Em 1970, ninguém sabia direito o que era transexualidade. Meus pais me levaram a uma médica que foi muito atenciosa e percebeu que meu gênero psicológico era feminino. Ela conversou com meus pais, mas eles acabaram me levando a um segundo médico, que entendeu que meu caso poderia ser revertido com hormônios masculinos. Tomei injeções e comprimidos, medicação para me fixar em um gênero ao qual não me sentia pertencente. Sofri efeitos desagradáveis, física e mentalmente. Um terceiro médico suspendeu a medicação ao perceber o erro do tratamento, mas eu já lidava com os efeitos negativos dos remédios. Cresceram pelos no meu corpo. Minha voz, que era fina e feminina, ficou rouca. Eu me senti mal e tive vergonha das mudanças.

Na infância, eu fazia brincadeiras consideradas de menina e de menino. Produzia bonecas com buchas vegetais e soltava pipas. Sempre fui apaixonada por aeronaves. Aos 18 anos, quis servir a meu país ingressando na FAB. Entrei sem problema, tive a oportunidade de trabalhar com aviões e exerci minhas funções como qualquer outro militar. Mas, mesmo trajando-me como homem, ainda me sentia pertencente ao gênero feminino. Ninguém imaginava que eu fosse transexual. Com quase 40 anos decidi que queria fazer a transição, inclusive cirúrgica. Eu me senti encorajada quando, em 1997, o Conselho Federal de Medicina autorizou a realização de cirurgias de redesignação de sexo no Brasil. Outro incentivo foi o fato de que a FAB já aceitava mulheres militares. Queria tirar a Maria Luiza de dentro de mim, parar de escondê-la. Tinha a esperança de ser aceita pela FAB, de usar a farda feminina. Então, procurei os médicos da Aeronáutica para comunicar minha decisão. Eles ficaram surpresos. Por dois anos, fui impedida de trabalhar. Sofri ameaças e maus-tratos. Alguns militares tentaram me fazer desistir. Após muita pressão e situações desagradáveis, decidiram-se por me reformar como incapaz definitivamente para o serviço militar. Eu me senti péssima quando fui obrigada a me afastar. Foi horrível saber que não poderia vestir minha farda nem exercer minhas funções. Quem ama o que faz e é obrigado a parar sofre.

Entrei com uma ação judicial para voltar à ativa. A Justiça já anulou a reforma imposta, mas a Aeronáutica interpôs recursos. Busco o direito retroativo às promoções. É meu direito. Farei questão de recebê-las usando a farda feminina, em formatura oficial. Fui militar, continuo militar. Tenho orgulho de tudo o que a FAB representa. Quanto a ser discriminada por alguns militares, sinto indignação e repulsa pelos atos de preconceito.

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Quando o cineasta Marcelo Díaz me procurou para fazer um documentário sobre minha vida (o filme Maria Luiza integrou a programação do festival É Tudo Verdade), entendi que era importante me manifestar. Quis contar minha história. Fui a primeira transexual nas Forças Armadas, mas tinha a certeza de que não seria a única. Acredito que a sociedade e os militares podem evoluir com respeito à diversidade. A pressão social me obrigou a ser alguém que eu não era por mais de quarenta anos. Mas não me arrependo das minhas escolhas. Antes tarde do que nunca.

Depoimento dado a Raquel Carneiro

Publicado em VEJA de 22 de maio de 2019, edição nº 2635

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