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Confusão do fato, a doutrina mensaleira

Petistas tentam creditar condenações à teoria alemã do domínio do fato. Mas não é a doutrina que levará Dirceu e companhia à cadeia. É a fartura de provas, a convicção da maioria do Supremo – e o rigor do Código Penal

Por Daniel Jelin Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO 25 nov 2012, 07h42
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  • O ex-ministro José Dirceu terá de se conformar mais cedo ou mais tarde: não deve sua condenação à doutrina jurídica que Ricardo Lewandowski tomou por ‘controvertida’ e ‘antiga’, e petistas, por ‘superada’, ‘nascida na Alemanha nazista’ e ‘atualizada na Guerra Fria’. O que levará o chefe do mensalão à cadeia não são teorias, mas provas. A tese do domínio do fato, fixação jurídica de petistas, não tem nada com isso.

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    Considere o exemplo hipotético: o poderoso A manda B autorizar C a pagar D e E, por intermédio de F e G, com o dinheiro que H desviou dos cofres públicos para a conta de C e seu sócio I, sob a proteção de J e K, que têm interesse em agradar A, B e C em troca de favores que possa obter de L, que não sabia de nada… Afinal, quem é a figura central da trama? Quem é coautor? Quem é mero partícipe? É disto que tratam diversas teorias à disposição das cortes na hora de pesar a responsabilidade de cada réu.

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    Domínio do fato é uma dessas teses. Por ela, dá-se o status de autor ao sujeito que tem o controle da empreitada criminosa, ainda que outras pessoas sujem as mãos em seu lugar. Parece banal, mas não é este o resultado a que chegam outras teorias, como a que toma por autor apenas o sujeito do ‘verbo núcleo’ do tipo penal (o que ‘mata’, ‘ofende’, ‘falsifica’ etc.) ou a que considera partícipe quem demonstra ‘vontade de partícipe’, independente da gravidade de sua conduta. Ao invocar esta ou aquela doutrina, o que se pretende é evitar aberrações como a condenação de um laranja a uma pena mais dura que a do mentor do crime ou o abrandamento da punição de um assassino que alega apenas cumprir uma ordem superior.

    É vasta e complexa a literatura sobre o conceito de autor. De toda maneira, qualquer que seja a doutrina abraçada pela corte, só se pesa a responsabilidade de um criminoso após a comprovação de que o sujeito tomou mesmo parte do crime. “Somente a invocação da teoria não tem o condão de dar fundamento a um juízo de condenação”, explicou o decano do STF, Celso de Mello.

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    Por isso, tanto nos argumentos da Procuradoria-Geral da República como no voto do ministro Joaquim Barbosa, o domínio do fato é uma rápida passagem da fundamentação teórica, sem jamais fazer as vezes de elemento-chave de convicção. Ao pedir a condenação dos réus, o Ministério Público se apoia é no Código Penal, em particular seu artigo 29: “Quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este cominadas, na medida de sua culpabilidade”. E Barbosa, ao dosar a pena dos chefes do esquema, ampara-se no artigo 62, que agrava a punição para quem “promove, ou organiza a cooperação no crime ou dirige a atividade dos demais agentes”. Em qualquer caso, condenação exige provas. Acusar a mais alta corte de dispensá-las no caso do mensalão é só desatenção. Ou má-fé.

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    A confusão começou com o voto de Lewandowski sobre a acusação de corrupção ativa contra Dirceu. O revisor do processo guardou suas considerações sobre domínio do fato para encerrar seu longuíssimo voto. Nele, acusou o Ministério Público de usar a doutrina como uma muleta retórica para compensar o que chamou de ‘absoluta e total carência de provas’ contra o ex-ministro. Em amarga intervenção, ao final da qual absolveria o chefe da quadrilha, Lewandowski disse que o domínio do fato dá margem a especulações, temeu pelo mau uso da doutrina em outras cortes e citou seu professor do ginásio para lamentar a importação de ‘movimentos intelectuais’ com 50 anos de atraso.

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    O revisor foi logo refutado por outros ministros, em particular Ayres Britto, Luiz Fux e, de forma esmagadora, Celso de Mello. Em detalhada fundamentação, o decano traçou as origens da teoria desde a Alemanha de 1915, passou por seu marco fundador, em 1939, e ocupou-se longamente da abordagem seminal do alemão Claus Roxin, em 1963. São essas datas que levaram o PT a falar em doutrina ‘nascida na Alemanha nazista’ e ‘atualizada em plena Guerra Fria’. O que o partido omite é que a teoria é justamente o arcabouço que autoriza a condenação exemplar de um carrasco nazista. Ou seja, omite o principal.

    Kai Ambos, penalista alemão
    Kai Ambos, penalista alemão (VEJA)
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    “Teoria não facilita o trabalho do Ministério Público”

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    Kai Ambos

    Penalista alemão, professor da Universidade de Göttingen

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    O que é a teoria do domínio do fato?

    A teoria do domínio do fato foi desenvolvida pelo professor Claus Roxin nos anos 1960 para distinguir melhor as formas de autoria e participação secundária (instigação, cumplicidade). Para os casos de macrocriminalidade, como o nazismo, Roxin propôs uma modalidade particular do domínio do fato: o domínio por meio de um aparato organizado de poder, também chamado “domínio por meio de uma organização.” Leia entrevista.

    Para desenvolver a teoria do domínio do fato, Roxin inspirou-se no caso de Adolf Eichmann, oficial nazista encarregado da logística do Holocausto – o mesmo carrasco que levou Hannah Arendt (1906-1975) a cunhar a expressão ‘banalização do mal’. O interesse de Roxin estava justamente em fundamentar uma doutrina que alcançasse o criminoso que não suja as mãos, para tratá-lo como autor, não cúmplice. Capturado na Argentina e julgado em Israel, Eichmann foi executado, na forca, em 1962. A obra Autoria e domínio do fato saiu logo no ano seguinte.

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    Segundo a formulação de Roxin, autor é quem tem o domínio do fato, e este pode ser exercido tanto pelo domínio da própria ação, que é o caso mais comum (quando o assassino decide apertar o gatilho, por exemplo) como pelo chamado ‘domínio da vontade’ (por coação, por exemplo). Ao desenvolver esta segunda modalidade de domínio do fato, Roxin chegou a um caso particular e bastante original: o ‘domínio por meio de um aparato organizado de poder’. Esta vertente fez fama em diversas cortes, desde a alemã, para julgar os crimes ocorridos na Alemanha Oriental, até a argentina, no caso do ditador Jorge Rafael Videla, e a peruana, no processo contra o ex-presidente Alberto Fujimori. (Supõe-se que a militância de esquerda não veja absurdo nessas condenações).

    E aqui a doutrina se cruza com o caso do mensalão. Esses “aparatos de poder” são descritos como estruturas hierárquicas à margem da lei, com poucos dirigentes e muitos subordinados. Nestes casos, os executores, que estão na ponta final da linha de comando, são facilmente substituíveis (“fungíveis”) e nem é necessário que todos se conheçam. Ao longo dessa estrutura verticalizada, quanto mais nos afastamos da cena do crime, tanto maior – e não menor – é a responsabilidade do agente. E é bem disso que trata o processo do mensalão: ‘uma grande organização que se constituiu à sombra do poder, formulando e implementando medidas ilícitas que tinham por finalidade a realização de um projeto de poder’, conforme a síntese de Celso de Mello. ‘Estamos a tratar de uma hipótese de macrodelinquência, e em situações assim é plenamente aplicável a teoria (do domínio do fato).”

    No mesmo voto, Mello afastou as insinuações de que o STF estivesse inovando ao acolher esta doutrina. Lembrou que a tese é absolutamente compatível com as leis brasileiras e já vem sendo aplicada – e bem aplicada – tanto em instâncias inferiores como no próprio Supremo.

    A teoria do domínio do fato volta a cruzar o caminho do mensalão em outra modalidade descrita por Roxin, a do ‘domínio funcional do fato’. Aqui, trata-se por coautores aqueles que, em ação orquestrada, realizam cada qual uma certa tarefa imprescindível para o êxito de determinada empreitada. Esta vertente foi lembrada nos votos de Joaquim Barbosa e de Luiz Fux. Também por esta teoria, o que se pretendeu foi negar o status de mero partícipe a Dirceu e Valério, entre outros réus. “Valério e seus sócios foram a ‘longa manu’ daqueles que idealizaram politicamente a patrimonialização do estado”, disse Fux.

    Até o início do julgamento, Roxin e sua doutrina passaram longe das preocupações dos mensaleiros. Nas alegações finais, são raras e breves as referências à teoria. As poucas citações tentam levar os ministros do STF a crer que os réus não tinham domínio qualquer dos fatos. É o caso de Simone Vasconcelos, que tentou passar por mera “executora das determinações” de Valério e dos sócios Cristiano Paz e Ramon Hollerbach. “Se alguém há de ser reputado como detentor do domínio sobre os fatos, seriam os sócios”. A defesa de Geiza Dias alegou algo próximo: não tinha nem o domínio, nem o conhecimento “das intenções e dos atos praticados pelos diretores da empresa SMP&B”. Simone foi condenada a mais de 12 anos. Geiza foi inocentada. O que determinou a sorte de cada uma não estava no âmbito da doutrina, mas nas provas: Geiza, a “funcionária mequetrefe” com “salário de doméstica”, preenchia cheques e passava e-mails, enquanto Simone, diretora da agência, cuidava pessoalmente para que o dinheiro chegasse aos mensaleiros, valendo-se até de carro-forte.

    Os mensaleiros podem até consultar Roxin em pessoa, como foi noticiado e depois desmentido, para saber se suas teses foram bem ou mal esgrimidas em plenário. Poderão de quebra conhecer outra tese famosa desenvolvida por Roxin, o princípio da insignificância, bastante aplicado em tribunais brasileiros para os chamados crimes de bagatela – ao que consta, nenhum mensaleiro chegou ao ponto de invocá-lo. Só não poderão contornar a fartura de provas que convenceram a maioria do Supremo a culpar 25 réus do processo.

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