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Como o clã Bolsonaro foi envolvido e descartado do caso Marielle

Sob sigilo e com vazamentos, a cronologia de como o presidente e filho saíram das investigações do assassinato da vereadora e do motorista Anderson Gomes

Por Marina Lang Atualizado em 15 mar 2021, 10h24 - Publicado em 14 mar 2021, 08h19

Quase um mês e meio havia se passado após a emboscada que duplamente assassinou a vereadora Marielle Franco (PSOL) e seu motorista Anderson Gomes, ocorrida em 14 de março de 2018 no Estácio, bairro da região central do Rio de Janeiro – e que neste domingo completa três anos sem apontar os mandantes e a motivação do atentado.  Àquela época, parte dos vereadores da Câmara Municipal do Rio de Janeiro foi convocada pela Delegacia de Homicídios da capital para prestar depoimento na condição de testemunhas, e não investigados.  

Entre eles, estava o filho do então deputado federal e, hoje, presidente da República Jair Bolsonaro (sem partido), o vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos). Seu gabinete fazia divisa com o de Marielle no 9º andar da Câmara – eram separados por apenas uma frágil parede que ora varia por divisórias de isopor, ora por concreto, a depender da estrutura dos gabinetes e do andar. No dia 26 de abril de 2018, Carlos Bolsonaro compareceu à unidade policial, na Barra da Tijuca (Zona Oeste do Rio) e lá deu sua versão sobre o relacionamento com Marielle. 

A briga

Carlos admitiu que teve uma discussão calorosa com um assessor de Marielle que, na versão do vereador, estava dando uma entrevista para uma emissora de TV espanhola quando, ao passar pelo corredor do 9º andar, supostamente foi chamado de “fascista”. Segundo relatou à polícia, o filho do presidente foi tirar satisfações e um bate-boca começou. De acordo com Carlos, Marielle apareceu e acalmou os ânimos; o vereador disse, ainda, que mantinha uma relação amistosa com a parlamentar assassinada em março de 2018, apesar das divergências políticas que possuíam. 

Não se sabe, exatamente, qual a data em que a discussão ocorreu. O que se sabe na versão de pessoas ligadas a Marielle é que Carlos hostilizava assessores do mandato da parlamentar, cujo assassinato completa três anos neste domingo, 14. Evitava, inclusive, entrar em elevadores com a equipe da vereadora.

Mas a informação dada por Carlos aos investigadores diverge do depoimento prestado por uma das assessoras de Marielle à Polícia Civil: ela declarou que se recordava que “uma pessoa ligada a Carlos Bolsonaro, o qual se encontrava em seu gabinete, fez uns comentários desrespeitosos para um dos assessores de Marielle, tendo se iniciado uma pequena confusão, em seguida Marielle e o próprio Carlos Bolsonaro acabaram intercedendo, com a finalidade de acalmar os ânimos exaltados”.

Escritório do Crime

Dias após os depoimentos sobre o entrevero, o jornal O Globo publicava, em 8 de maio de 2018, uma reportagem apontando uma testemunha que acusava o miliciano Orlando da Curicica e o ex-vereador Marcello Siciliano como os supostos responsáveis, respectivamente, pela execução e pelo mando do crime. Durante meses a fio, a polícia seguiu essa pista, completamente enredada por um falso testemunho.

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Foi o miliciano Orlando da Curicica, na tentativa de se livrar do crime que lhe fora imputado, quem chamou o Ministério Público Federal em 22 de agosto de 2018 para dar sua versão dos fatos e revelar a estrutura do Escritório do Crime, grupo de milicianos e assassinos que mata sob encomenda de políticos, bicheiros e contraventores, e que, segundo autoridades, era  comandado pelo ex-capitão da PM Adriano Magalhães da Nóbrega e pelo major Ronald Paulo Alves Pereira

Tanto capitão Adriano quanto major Ronald foram agraciados com a medalha Tiradentes, a mais alta honraria da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, pelo então deputado estadual e atualmente senador Flávio Bolsonaro (Republicanos). 

A ex-mulher de Adriano e a mãe dele foram mantidas como funcionárias no gabinete do então deputado estadual por alguns anos. Elas são consideradas pelo Ministério Público do Rio de Janeiro como figuras nucleares do esquema de corrupção conhecido como  “rachadinhas”, em que parte dos salários dos nomeados no gabinete de Flávio era repassada ao operador financeiro do esquema, o policial militar reformado Fabrício Queiroz, hoje preso em regime domiciliar e monitorado por uma tornozeleira eletrônica. Todos eles foram denunciados por peculato, lavagem de dinheiro e associação criminosa pelo órgão. O processo, no entanto, está emperrado no Superior Tribunal de Justiça (STJ) e no Supremo Tribunal Federal (STF) graças a uma infinidade de recursos protocolados pela defesa jurídica muito eficiente do senador. O MP do Rio estima que mais de 6,1 milhões de reais foram desviados dos cofres públicos ao longo dos anos em que Flávio Bolsonaro era deputado estadual.

Em dezembro do ano passado, VEJA revelou que dois milicianos do Escritório do Crime se filiaram ao PSOL em novembro de 2016. Laerte Silva de Lima era membro do segundo escalão da organização criminosa chefiada pelo ex-capitão da PM Adriano Magalhães da Nóbrega. Já sua mulher Erileide Barbosa da Rocha fazia a contabilidade da máfia e gerenciava carros clonados, conforme a reportagem de VEJA mostrou. A suspeita da polícia é que eles tenham se infiltrado para fins de monitoramento das agendas do partido, que já os expulsou das fileiras da legenda.

Bolsonaros vs. Marielle 

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Os Bolsonaro voltariam ao foco do inquérito no final de 2019, quando a polícia descobre, cerca de 11 meses depois da apreensão, uma anotação na planilha do condomínio Vivendas da Barra, que apontava o carro do ex-PM Élcio de Queiroz – réu indicado pela polícia e pelo MP do Rio como o motorista do Chevrolet Cobalt clonado que emboscou o carro de Marielle e Anderson – sendo autorizado pela casa nº 58, onde o presidente Jair Bolsonaro residia. A poucos passos de distância, morava também o PM reformado Ronnie Lessa – réu acusado pelas autoridades como sendo o atirador da emboscada contra a vereadora do PSOL e o seu motorista. 

Planilha com anotação da casa do presidente Jair Bolsonaro
Planilha com anotação da casa do presidente Jair Bolsonaro (Arquivo Pessoal/Reprodução)

Quando foram presos, em 12 de março de 2019, o então delegado Giniton Lages citou um suposto namoro da filha de Lessa com um dos filhos de Bolsonaro. A informação, no entanto, não consta nos autos da primeira fase do inquérito – cujo acesso foi liberado para a imprensa apenas para demonstrar que o clã Bolsonaro não era alvo das investigações. Em carta aberta enviada à reportagem pouco mais de um ano depois, a filha de Lessa negou qualquer tipo de envolvimento amoroso com qualquer um dos filhos de Bolsonaro. 

Policiais, em seguida, tomaram o depoimento do porteiro do condomínio Vivendas da Barra, que confirmou que a entrada de Élcio de Queiroz teria sido autorizada por Jair Bolsonaro. O depoimento foi divulgado pelo Jornal Nacional, da TV Globo, em 29 de outubro de 2019. 

Na madrugada do dia 30, diretamente de uma agenda da Arábia Saudita, o presidente fez uma das suas tradicionais lives para rebater o que foi apresentado. Ele se irritou e disse que nada tinha a ver com o caso Marielle e Anderson. Ele acusou então governador agora afastado Wilson Witzel (PSC) de interferência nas investigações. Bolsonaro, então, acionou o ex-ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro, para interrogar o porteiro – neste segundo depoimento, policiais constataram que o funcionário do condomínio Vivendas da Barra mentiu na versão apresentada anteriormente à polícia. A anotação da planilha, por sua vez, foi classificada como um erro da portaria. 

Na live, ele chega a opinar sobre a eventual federalização do caso Marielle, cujo resultado foi negado por unanimidade em maio de 2020. “Tem que continuar no Rio, sim. Acho que tem que continuar, sim. Mas tem que ter uma supervisão. Eu peço ao Ministério Público que supervisione os processos, o meu e o do Flávio, e [que] vejam as ilegalidades”, declarou.

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Em setembro de 2020, toda a equipe de investigação do caso Marielle foi trocada na DH. A equipe do MP do Rio foi mantida em 2021.

Também no dia 30 de novembro de 2019, Carlos Bolsonaro, que mora em outra casa no Vivendas da Barra, recolhe os áudios da portaria do condomínio e posta dois vídeos no Twitter mostrando que a voz de quem autorizou a entrada de Élcio de Queiroz era o próprio Ronnie Lessa. A ação gerou repercussão sobre uma eventual obstrução à justiça. No entanto, o procurador-geral da República Augusto Aras não viu problemas na coleta de Carlos e pediu ao STF para arquivar a acusação – o pedido foi atendido pela Suprema Corte.

Durante todo o período entre novembro e dezembro de 2019, pessoas ligadas à vereadora Marielle Franco foram ouvidas e questionadas sobre Carlos Bolsonaro nos autos do inquérito que investiga os mandantes da morte da vereadora e de seu motorista. Elas detalharam as relações belicosas que o filho do presidente mantinha com a parlamentar. 

A polícia trabalhou, durante ao menos dois meses, com a tese do possível envolvimento de Carlos Bolsonaro com o crime – nos bastidores da imprensa, houve rumores de que o vereador havia se livrado de equipamentos como computadores e celulares, já que estava sendo investigado, também, no âmbito do inquérito das fake news que segue tramitando no STF.

No dia 5 de novembro de 2019, uma equipe de policiais se dirige à Penitenciária Federal de Porto Velho, em Rondônia, para interrogar Ronnie Lessa sobre o suposto envolvimento dele com o clã Bolsonaro. O réu pelas mortes de Marielle e Anderson negou qualquer tipo de relação com a família política, ainda que morasse em uma casa muito próxima à do então presidente da República. 

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Em 14 de dezembro do mesmo ano, o deputado federal Otoni de Paula (PSC), aliado ferrenho do bolsonarismo, publicou um vídeo declarando que soube por “fontes muito sérias” que o governador afastado Wilson Witzel estaria “forjando provas” para acusar a família do presidente, e que o teor de supostos áudios de conversas envolvendo Carlos e Flávio seria divulgado no Fantástico, programa dominical da TV Globo, no dia seguinte. Tal apuração, contudo, jamais foi veiculada pelo programa. O vídeo foi tirado do ar pelo político, mas foi registrado pelos maiores veículos de comunicação do país e por um tweet de Carlos Bolsonaro apoiando o teor da gravação. 

Bolsonaro fala sobre Marielle 

Depois que foi registrado pela imprensa que o porteiro do condomínio de Bolsonaro mentiu em depoimento, a suposta relação do clã presidencial com o caso caiu em esquecimento – principalmente devido ao sigilo das investigações do caso de duplo homicídio mais complexo do país. 

Houve, no entanto, a famosa declaração verborrágica em pronunciamento do presidente no dia 24 de abril de 2020 – ponto em que o ex-ministro Sérgio Moro desembarca do governo Bolsonaro. Segundo Moro, desde agosto do ano anterior, o ex-diretor da Superintendência da Polícia Federal do Rio, Mauricio Valeixo, estava sendo assediado por Bolsonaro para deixar o cargo. A exoneração do chefe foi publicada com a assinatura de Moro, que alegou não ter ratificado o documento. Na mesma data, uma edição extra do Diário Oficial publicou a saída do delegado sem a assinatura do ex-ministro. Moro deixou o cargo na mesma data alegando interferência de Bolsonaro na PF do Rio. 

Sem ser questionado sobre Marielle, Bolsonaro declarou em discurso que seu ex-ministro se preocupou mais com a vereadora executada a tiros do que com a facada que sofreu em 2018, perpetrada por Adélio Bispo – que agiu sozinho e é inimputável, segundo as conclusões da PF. 

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Bolsonaro declarou, então, que procurou a PF quando soube da notícia de que seu filho Jair Renan teria, supostamente, namorado a filha de Lessa. No pronunciamento oficial, o presidente declarou que seu filho disse que “saiu com metade do condomínio” Vivendas da Barra. 

“E aí eu fiz um pedido para a Polícia Federal, quase com um ‘por favor’: chegue em Mossoró e interrogue o ex-sargento. Foram lá, a PF fez o seu trabalho, interrogou e está comigo a cópia do interrogatório, onde ele diz simplesmente o seguinte: a minha filha nunca namorou o filho do presidente Jair Bolsonaro, a minha filha sempre morou nos Estados Unidos”, disse o presidente. 

Tal depoimento jamais foi revelado ao público e é alvo de questionamentos das famílias de Marielle e Anderson em dossiê lançado na última sexta-feira, 12. 

“Mas eu é que tenho que correr atrás disso? Ou é o ministro? Não é a Polícia Federal que tem que se interessar? Não é para me blindar porque eu não estou em busca de um crime”, declarou, à época, o presidente. 

As falas geraram profunda indignação entre familiares de Marielle. Luyara Franco e Anielle Franco, respectivamente filha e irmã da vereadora assassinada, se manifestaram imediatamente repudiando os comentários do presidente.

 

A VEJA, a filha de Ronnie Lessa enviou uma carta aberta – também rejeitando o que Bolsonaro disse. 

Cerca de dois meses depois, em 10 de junho de 2020, o ex-chefe da Divisão de Homicídios, Antônio Ricardo de Lima Nunes, declara que não há indícios de participação da família Bolsonaro no caso Marielle e Anderson. ​”Não tem nenhuma participação da família Bolsonaro nesse evento. Não temos indício dessa família no caso. Temos certeza que não há participação”, disse, a jornalistas, na época. 

A equipe da DH foi trocada logo após a saída do governador afastado Wilson Witzel. Conforme VEJA revelou, os atuais investigadores trabalham com a tese de complô de mandantes e intermediários das mortes de Marielle e Anderson. Por enquanto, não há indícios de que a família Bolsonaro esteja envolvida no caso – o descarte de uma eventual participação já havia ocorrido na gestão anterior da delegacia.

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