A paz dá uma chance às crianças do Alemão
A interrupção do terror imposto pelo tráfico muda a rotina de creches e escolas e pode devolver a infância a quem vive nas favelas do complexo
![Crianças da escola Afonso Várzea soltam balões brancos ao som de "Sementes do Amanhã", de Gonzaguinha, durante festa de fim de ano no Complexo do Alemão](https://veja.abril.com.br/wp-content/uploads/2016/06/alemao-festa-original.jpeg?quality=90&strip=info&w=620&h=349&crop=1)
“Essas crianças que estão aqui nunca viram o Alemão calmo. Foi a vida toda embaixo do tacão”, afirma a diretora Eliane Sampaio, há 24 anos à frente da escola Afonso Várzea
Todos os dias, uma criança chegava a uma das escolas instaladas dentro do Complexo do Alemão, acompanhada do pai. O homem dava um beijo no filho e saía para trabalhar – na boca de fumo, carregando um fuzil. Histórias como essa fazem parte de um vasto repertório de casos que dão contornos assustadores à realidade genericamente definida como “domínio do tráfico”. O pior da cena descrita por uma professora que trabalha na região é que ela nem chamava mais a atenção. “Estávamos todos acostumados”, escreveu uma professora. “Acostumados aos tiros, acostumados aos desmandos dos bandidos, acostumados a ter medo ao sair da Linha Amarela,. Acostumados a ser chamados de área de risco.”
A convivência com situações de banalização do terror ensinou por décadas às crianças que nasciam e cresciam no Alemão que a vida delas não seria como a do resto da cidade. Ali, aprenderiam outros costumes, seriam regidas por “leis” próprias, acabariam lidando melhor com o medo e a arbitrariedade. Qualquer vacilação era punida barbaramente. Todos lembram do caso do adolescente de 13 anos que começou sua carreira de criminoso independente do tráfico, fazendo roubos na região. Falha gravíssima pelas normas dos traficantes, detentores do monopólio do crime. Ele foi morto e, depois, queimado. Deixou uma menina grávida de gêmeos.
Novo horizonte – Duas semanas depois da ocupação do Alemão pelas forças de segurança, essas histórias terríveis são muito recentes, e o medo de retrocesso ainda é grande. A maior parte das pessoas entrevistadas nesta reportagem pediram para ter seus nomes omitidos. Mas o sentimento predominante é a esperança. Um novo horizonte foi aberto para os cerca de 80 mil moradores do complexo que se tornou o mais forte e perigoso bunker do tráfico no Rio de Janeiro. Para as crianças, é a oportunidade de uma infância diferente da que conseguiram ter até hoje.
“Aquele meio exige além do razoável daquelas crianças. Elas são forçadas a um amadurecimento precoce, que prejudica o desenvolvimento. Na escola, não rendem tanto e não desenvolvem o pensamento abstrato. Isso irá mudar. Em breve, com certeza as professoras terão turmas diferentes”, afirma Maria Luiza Bustamante, chefe do serviço de Psicologia da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ).
Na escola municipal Afonso Várzea, no acesso ao Alemão, a imagem de crianças dormindo era corriqueira. Tanto sono era resultado dos tiroteios – um “bicho papão” que assombrou legiões de meninos e meninas – que obrigavam todos a ficar de sentinela. “Essas crianças que estão aqui nunca viram o Alemão calmo. Foi a vida toda embaixo do tacão”, afirma a diretora Eliane Sampaio, há 24 anos à frente da instituição. A fresta que se abriu com a ocupação fez a escola repensar o seu papel na favela. Desde a ocupação da Vila Cruzeiro, Eliane já havia antecipado: “Nunca mais seríamos os mesmos”.
Nesta sexta-feira, a confraternização entre as instituições de ensino do Alemão, os alunos da diretora Eliane demonstraram que começam a se afinar à nova realidade. Desde terça, ensaiavam a música “Sementes do Amanhã”. Os pais acompanharam a evolução da perfomance dos filhos e tia Eliane se esforçou para explicar a letra. “Fé na vida, fé no homem, fé no que virá. Nós podemos tudo, nós podemos mais. Vamos lá fazer o que será”, entoavam os alunos.
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