O primeiro dia de aula no Complexo do Alemão
Crianças relatam o que viram e sentiram desde o início da retomada de um dos principais redutos do tráfico no Rio
“Aqui, é um helicóptero, um tanque de guerra, uma casa de um morador que o bandido subiu dando tiro, um caveirão e uma rede de esgoto por onde os bandidos fugiram”, explica Pedro, de 9 anos, mostrando o desenho que acaba de fazer
– Crianças, alguém sabe me dizer o que está acontecendo este mês?
– Os policiais ‘tão’ lá em casa!
A resposta que a professora esperava para a pergunta feita na Escola Municipal Affonso Várzea era ‘Natal’. Nesta terça-feira, primeiro dia de aula após a ocupação do Complexo do Alemão, ela queria lembrar a data antes de começar a distribuir os desenhos do Papai Noel para animar as 20 crianças – cerca de um terço da frequência normal – que foram à aula. Com o grito de J., de 5 anos, que saltou da cadeira levantando os braços certo de que sabia a resposta, o colega R., 6, emendou o papo. “Caraca, eu vi o caveirão! E os helicópteros tudo, você viu? Ele passava assim pertinho, pertinho, tututututu”. J., não menos empolgado, respondeu: “E você viu aquela coisa assim grandona que espirra fogo? Tinha um montão lá na frente da minha casa. É bonitona, né?”
Dos cerca de 1.000 alunos que estudam na escola no pé do Morro do Alemão, apenas 200 saíram de casa. A diretora, Eliane Sampaio, chegou às seis horas da manhã para avaliar se abriria as portas. Decidiu pela volta às aulas. Os alunos foram recebidos por dois carros do Exército apinhados de soldados com farda e boinas vermelhas, tendo ao fundo um cartaz em que se lê “Era uma vez um lugar onde tudo estava ao alcance de nossas mãos”. “À normalidade a gente não volta porque o coração está um pouco estragado”, diz Eliane, lembrando os cinco dias em que o colégio ficou fechado. Em todo o complexo, são 26 escolas e creches municipais. Todas reabriram nesta terça.
Pela manhã, na sala da terceira série, a turma só queria saber sobre a história do avô de dois alunos da classe, que morreu no domingo. Um deles contou que ele passeava no Alemão, durante a operação, e por ser surdo não ouviu uma ordem dada por um dos traficantes. “Levou um tiro na cabeça e morreu”, disse uma das professoras. À tarde, os 16 alunos (de uma turma de 36) pouco falaram. Para que desabafassem, receberam uma tarefa: fazer um desenho e escrever sobre as expectativas e o sentimento em relação à ocupação do lugar onde vivem. “Aqui, é um helicóptero, um tanque de guerra, uma casa de um morador que o bandido subiu dando tiro, um caveirão e uma rede de esgoto por onde os bandidos fugiram”, explica P., de 9 anos, que completou o trabalho escrevendo: “Fiquei muito abalado com bandidos trocando tiros com a polícia. Era muito triste. Foi um dia de guerra, foi um dia marcante. Eu espero paz no futuro.”
Às 16h, no jardim de infância, as professoras começaram a falar alto para evitar que as crianças ouvissem disparos. Não adiantou. M. largou o giz de cera com que pintava o Papai Noel e gritou ainda mais alto: “Ih, é tiro, tia!”. Na terceira série, foi como se soubessem exatamente como proceder. Os alunos largaram papel e caneta e saíram da sala. “Desde que nasceram estão acostumados com tiro”, diz uma das professoras. Em frente à escola, os soldados do Exército corriam de um lado para o outro. Do alto do morro, três disparos lembraram que os moradores do Alemão ainda estão longe de viver em paz.
“Eles atiram muito”, diz C., de 5 anos, que não reconheceu o barulho, mas lembra de quando estava andando de bicicleta na frente de casa, na última quinta-feira, e a mãe decretou que brincadeiras na rua estavam proibidas por causa dos tiros. Sem luz e sem poder usar o ‘lactoc’, ela só comeu e tentou ir dormir. A irmã chorava muito. “Ela tem medo do tiroteio porque é bebezinha. Eu não tenho, não. Sou grande”.
Na terceira série, a aula acaba com a pergunta:
– Crianças, o que podemos fazer para recuperar ou fazer a paz?
– Criar UPP, vai ficar “muito mais melhor”.
– E vamos ficar de braços cruzados, esperando UPP e policiais? Como vocês podem fazer para ter paz?, pergunta a professora de novo.
– Denunciar ao disque-denúncia!, responde uma criança.