Marielle, representação descritiva e o “hétero abraço” de você-sabe-quem
Mulher, negra e bissexual, Marielle Franco representava, magistralmente, grupos oprimidos. Faz falta!
É longo o debate sobre qual deve ser o papel de um representante legislativo. Um parlamentar deve fazer tudo que seus eleitores desejam, mesmo que isso prejudique o resto da população? Deve atentar para os interesses de financiadores de campanha? É razoável que uma deputada ignore os anseios de sua base eleitoral (lato sensu, por favor!) e apoie mudanças legislativas que podem implicar derrota para essa base no curto prazo, mas com consequências ótimas no longo prazo? Qualquer vereador, deputado e senador se depara com essas questões.
Uma das respostas considera o representante como alguém autônomo com relação a seus eleitores. Pode propor leis e votá-las de modo diferente do que seus eleitores fariam em um plebiscito. O deputado seria recompensado com reeleição apenas se os convencesse de que sua atuação foi no sentido de tomar medidas boas para eles no longo prazo. Poderia argumentar que aos eleitores falta expertise e sobra miopia – ou seja, não conseguem enxergar que a aprovação da reforma impopular hoje garantirá, por exemplo, sua aposentadoria futura.
Outra resposta para o dilema da ação parlamentar defende que o deputado deve ser apenas um condutor dos desejos expressos por seus eleitores. Suas atividades devem espelhar a vontade imediata da população. A ideia de um mandato “coletivo” vem daí: quem é o deputado para ter ideias próprias, sem autorização prévia de seus eleitores!? É apenas um veículo através do qual preferências são transformadas em ações políticas.
Há um meio-termo para conciliar essas duas perspectivas. Em reuniões com seus eleitores, uma deputada pode ouvir demandas impossíveis e argumentar a favor de medidas menos radicais, palatáveis para seus colegas. Pode convencer sua base eleitoral (necessariamente minoritária) a ajustar suas expectativas considerando a natureza da aprovação de medidas legislativas (necessariamente majoritária). A “seta” do processo deliberativo apontaria do representante para seus eleitores.
Falta algo nessa discussão. Será possível um parlamentar engajar-se com seus eleitores de uma maneira, digamos, não-paternalista? A cientista política Suzanne Dovi tem certeza que sim. Em artigo seminal publicado na American Political Science Review, Dovi argumenta que a representação descritiva é um caminho para melhorar a qualidade da democracia. Esse tipo de representação ocorre, por exemplo, quando um homem homossexual se torna deputado. Ou quando um sindicalista se torna presidente. O “representante descritivo” caracteriza um grupo social distinto.
Segundo Dovi, o melhor tipo de representação descritiva ocorrerá quando o político tiver forte “relação mútua” com sua base eleitoral, e também quando representa um subgrupo “carente”. (Os termos originais são mutual relationships e dispossessed subgroups.) Pensando assim, não havia melhor exemplo desse tipo de representação do que a vereadora Marielle Franco (PSOL-RJ). Mulher negra e bissexual, a vereadora incluía seus eleitores em discussões relevantes, definidoras de sua atuação legislativa.
Três de suas propostas na Câmara Municipal do Rio de Janeiro exemplificam. O projeto de lei 265/2017 defende a criação de casas de parto, especialmente em regiões mais pobres da cidade, foi aprovado. Agenda feminina. Outro projeto importante (82/2017), este reprovado, estabelecia o Dia da Visibilidade Lésbica . Acha isso banal? Dificil pensar em um grupo social mais carente, menos representado politicamente, do que as lésbicas. Marielle Franco também propôs a criação do “Espaço Coruja” com o projeto de lei 17/2017. Trata-se de creches infantis noturnas que atenderiam pais que trabalham em outros horários além do habitual nove-às-cinco. Na Noruega, creches foram estabelecidas apenas quando mulheres passaram a ocupar espaço relevante na política, como mostra um artigo de Kathleen Bratton e Leonard Ray no American Journal of Political Science.
Este projeto de Marielle ainda tramita na Câmara Municipal do Rio de Janeiro. Lá está Carlos Bolsonaro, filho do pré-candidato à presidência. Jair Bolsonaro manda um “hétero (sic) abraço” para seus seguidores. Marielle queria visibilidade e direitos para homossexuais. Ao pavonear sua heterossexualidade, a insegurança de Jair chega a dar dó.
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