Por que tantos pedem desculpas a Marina? Ou: Um inimputável na República já é inaceitável
Leiam esta declaração: “A ex-senadora [Marina Silva] forma no melhor quadro da República em termos de apego a princípios, em termos de ética, mas, em direito, o meio justifica o fim, e não o fim, o meio. Não podemos estabelecer, considerados esses aspectos ligados à personalidade de quem capitaneia o futuro partido, o critério de […]
Leiam esta declaração:
“A ex-senadora [Marina Silva] forma no melhor quadro da República em termos de apego a princípios, em termos de ética, mas, em direito, o meio justifica o fim, e não o fim, o meio. Não podemos estabelecer, considerados esses aspectos ligados à personalidade de quem capitaneia o futuro partido, o critério de plantão. O critério é linear para todos”.
A frase, muito feliz, é do ministro Marco Aurélio. É isto: quando, em direito, o fim justificar os meios, então não se terá mais uma sociedade das leis, mas de arbítrio. Até faria um pequeno reparo na fala, que não muda a sua substância, mas a torna, talvez, mais clara: em direito, os meios QUALIFICAM o fim. A rigor, assim é na vida. A depender dos instrumentos que se usem para alcançar um determinado objetivo, por mais meritório que este seja, perde-se o sentido mesmo daquilo que se procurava alcançar.
Em nome da democracia e da legitimidade, a Rede está pedindo que o TSE ignore a lei. Pode-se até entrar numa tertúlia para avaliar se ela é injusta, atrasada, incompatível com a vida moderna, o mundo digital etc. e tal… Mas não é essa a hora nem é esse o lugar.
Por que tantas vênias?
Chamo a atenção dos leitores para algo curioso, nada surpreendente para mim, que está em curso. Imprensa, ministros do Supremo, políticos, todos os que, enfim, se manifestam sobre o caso do partido de Marina o fazem quase pedindo desculpas, entremeando a fala de vênias e salamaleques retóricos para deixar claro o apreço que têm por Marina, quanto admiram Marina, quão ética é Marina, quão pura é Marina…
Há algo de profundamente errado num país em que é preciso recorrer a tantas adversativas encomiásticas para justificar a aplicação da lei. Fica até parecendo que, quando se lançaram na coleta de assinaturas, a Rede e seus comandantes desconheciam a legislação — ainda que desconhecessem, diga-se, não seria razão aceitável para o tribunal atropelá-la.
Há muita gente indignada porque lembrei que determinados aspectos da atuação de Marina remetem a Fernando Collor. Não sei se conseguirei mitigar a fúria dos críticos ao observar, agora, que Marina também tem muito de Lula, além do fato de ambos pertencerem, como ela mesma já destacou, à dinastia dos “Silva”… NOTA À MARGEM: este escrevinhador também traz um “Silva” no nome completo, mas não nasceu vocacionado para o mando… Adiante.
Entre os seus, Marina também é uma autoridade acima de qualquer contestação possível. Para lembrar (toc toc…) Marilena Chaui, segundo quem o mundo se ilumina quando Lula fala, também a ex-senadora é cultuada como aquela que traz a luz da razão suprema. Vejam o caso: ela vai ou não disputar a Presidência no ano que vem por outro partido se o TSE cumprir a lei e disser “não” à Rede? Ninguém sabe. É um segredo que está acima das contingências políticas, onde transitam os humanos.
A origem de Marina lhe garantiria um lugar superior no quadro político, imune ao equívoco, ao questionamento, até mesmo à realidade. Em muitos aspectos, ela sofisticou a mística lulista: ele faz praça de sua ignorância formal e de sua baixa escolaridade, que seriam compensadas com uma inteligência natural — é, sim, notavelmente inteligente, diga-se, mas é evidente que as máquinas sindical e partidária lhe forneceram os instrumentos para a luta política; onde parece haver apenas intuição existe é método. Marina se distanciou de Lula nesse particular: também a mãe da ex-senadora “nasceu analfabeta” (lembram-se disso?), mas ela criou a imagem da superação: a mística da floresta só lhe serve hoje como elemento que contrasta com o seu discurso de suposto apelo universal. Lula, em suma, faz praça de sua falsa ignorância bem-sucedida; Marina quer ser reconhecida por uma sabedoria que tem um certo quê de além-do-humano. Se Marina dominasse a máquina sindical que Lula domina, seria de dar medo…
Minhas preocupações em política transitam por outros lugares. Eu não reconheço a santidade de pessoas — vale até para o papa (post anterior), certo? A política consiste no agrupamento de indivíduos, todos eles dotados de determinados interesses, que julgam ter soluções que servem ao conjunto da sociedade. E terão de se confrontar com outros, em iguais condições. Não há espaço, não nas democracias, para vocações messiânicas. Já basta um inimputável na República — inimputável, diga-se, em sentido estrito: ou alguém conseguiria explicar por que Lula não foi um dos réus do mensalão?
A ordem legal não tem por que se desculpar com Marina caso seu partido não obtenha o registro. A rigor, a Rede é que deveria, humildemente, admitir que está a cobrar um juízo de exceção em nome da suposta legitimidade. Seria um exotismo, é certo, mas bem mais adequado à realidade dos fatos.