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Por Vilma Gryzinski
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O melhor dia da nossa história: quando o Muro de Berlim caiu

“Nós somos o povo”, gritaram os alemães orientais; e tudo veio abaixo, num acontecimento tão gigantesco que ainda parece inacreditável trinta anos depois

Por Vilma Gryzinski 4 nov 2019, 06h14

Várias empulhações vão aparecer por esses dias, quando o espantoso 9 de novembro de 1989 é lembrado por um aniversário redondo.

A mais comum e tola é falar nos “outros muros” que existem no mundo.

O objetivo, claro, é criticar as barreiras erguidas por Israel para bloquear a entrada de terroristas palestinos e o muro que, por mais que tente, Donald Trump não consegue construir na fronteira com o México.

Por mais que seja triste a existência de muros, mesmo em nome da obrigatória preservação de vidas e o patrimônio comum dos cidadãos de um país, a comparação ofende a lógica e a história. 

O Muro de Berlim foi erguido em 1961 para impedir que os alemães orientais saíssem, não que entrassem.

Deu assim o mais imbatível slogan anticomunista de todos os tempos, o velho e até hoje, em certos círculos, irritante: “Se o comunismo fosse tão bom, não precisaria de muros para impedir que as pessoas fugissem”.

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Uma ilha cercada de território controlado pela União Soviética por todos os lados, a parte ocidental de Berlim era a passagem mais fácil depois que as fronteiras entre as duas metades foram ficando “duras”.

A Alemanha Oriental, ou comunista, corria o risco de acabar por falta de gente. 

Desde o final da guerra, quase 3,5 milhões já haviam passado da parte sob domínio do regime comunista, inteiramente tutelado por Moscou, para o lado ocidental, onde a reconstrução e o regime democrático bancados pelos Estados Unidos já impulsionavam um modo de vida que se tornaria incomparável.

A propaganda comunista, evidentemente, pintava um quadro contrário: além de ser um engodo, deixar o lado oriental era um abominável ato de depravação moral e política.

“Os que se deixam ser recrutados, servem objetivamente aos interesses da reação e do militarismo” da Alemanha Ocidental, dizia um panfleto de 1955.

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“Não é execrável que alguém, por causa de umas propostas de emprego e promessas de um ‘futuro garantido’, deixe um país onde as sementes de uma vida nova e mais bela já estão germinando e dando os primeiros frutos?”.

A segunda mistificação comum numa data como a dessa semana é dizer que a antiga Alemanha Oriental vota mais na extrema-direita, continua a ter um padrão de vida mais baixo e um complexo de inferioridade em relação ao lado Ocidental.

“Sempre existe uma sensação de decepção por serem os alemães orientais ainda tão diferentes. Tão estranhos, tão ingratos, tão difíceis de treinar”, ironizou no Guardian o escritor Maxim Leo.

“Os alemães orientais votam na direita, não gostam de estrangeiros, não acreditam em Deus, comem muita carne e quase não têm filhos, embora façam sexo acima da média.”

A intenção de ridicularizar o que seria a visão padrão dos ocidentais sobre seus compatriotas ainda ligeiramente diferentes faz parte do pacote esquerdista de diminuir a importância da queda do Muro de Berlim e até insinuar que a vida não melhorou muito depois disso.

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É uma estratégia autodestrutiva porque não resiste a uma única pergunta: qual seria a alternativa?

UM MILAGRE”

A queda do Muro, com sua importância objetiva e também simbólica como o evento mais estrondoso  do fim não só do comunismo na Europa como da Guerra Fria, não perdeu em trinta anos nem um pedacinho de seu impacto.

Todas as pessoas hoje acima da faixa dos 45 anos nunca testemunharam um acontecimento de dimensão histórica semelhante.

E todas abaixo dessa faixa vivem num mundo que ficou melhor com a eliminação da possibilidade de um conflito nuclear apocalíptico entre os dois grandes blocos e a disseminação da democracia no antigo bloco soviético.

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A própria Rússia, com todos os problemas que enfrentou depois do desmanche do comunismo e com o putinismo hoje vigente, é incomparavelmente menos terrível, para si mesma e para os outros.

Como todos os grandes eventos transformadores, o Muro caiu por uma combinação de fatores que vão desde a marcha inexorável da história até acasos inacreditáveis.

Sem falar nos personagens.

Em primeiro lugar, Mikhail Gorbachev, o secretário-geral do encarquilhado mas poderoso Partido Comunista da União Soviética que começou tentando melhorar o comunismo e terminou constatando que a coisa não tinha jeito.

Foi Gorbachev quem fez o impossível e determinou a retirada pacífica das forças soviéticas de seus satélites na Europa Oriental, compreendendo o tamanho do tsunami pacífico e incontrolável, exceto por massacres de dimensões impensáveis, que varria o império vermelho.

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Quando centenas de milhares de alemães orientais, que haviam passado a vida sem poder sequer sussurrar suas convicções, começaram a gritar nas ruas “Nós somos o povo”, a Polônia já havia tido eleições que, na prática, encerraram o comunismo.

Um certo Karol Wojtyla, um papa que acreditava inabalavelmente no poder da fé e da resistência à  tentativa fadada ao fracasso de acabar por decreto com ela, havia alimentado um desejo de liberdade maior do que todo o poder soviético.

Atenção: o futuro João Paulo II não era um anticomunista militante e explícito quando vivia na Polônia sob o stalinismo, o que dificilmente permitiria sua sobrevivência.

 A contrário, para os dirigentes comunistas, parecia suficientemente flexível, com um temperamento amável e contemporizador.

Era o tipo de sujeito com quem se podia negociar.

O erro só foi percebido em 1979.

Dez anos antes da queda do Muro, João Paulo II foi recebido por multidões em transe na Polônia. “Queremos Deus”, bradavam milhões ao novo papa.

Václav Havel, um dramaturgo nada religioso,  ele próprio um dos personagens do concerto histórico do fim do comunismo como um dos líderes da “revolução de veludo” na Checoslováquia,  classificou a visita do papa åa Polônia de “um milagre”.

Descartando-se, de novo, as conotações religiosas, os aspectos milagrosos da queda do Muro chegam até ao campo da comédia.

Como a Hungria, outro país da órbita soviética, havia liberado a passagem para a Europa Ocidental e milhares de alemães orientais estavam fazendo a longa viagem, nem que fosse só para ver como era, o regime comunista havia decidido fingir que abrandaria as restrições, imaginando controlar um o estouro da boiada que não tinha volta.

Às 7 horas da noite de 9 de novembro de 1989, um burocrata do partido chamado Günter Schabowski deu uma longa e enrolada entrevista ao vivo pela televisão oficial – obviamente a única – sobre um projeto de lei com alterações nos regulamentos sobre viagens ao exterior.

A coisa só ficou animada quando ele disse que, na sua opinião, o direito de viajar à Alemanha Ocidental tinha efeito imediato. Foi trapalhada histórica.

Acabada a entrevista, centenas, depois milhares de pessoas saíram de casa, foram até o Muro e começaram a derrubar a monstruosidade.

Os soldados alemães, orientados a “não hesitar em usar sua arma de fogo, nem quando a fronteira é violada na companhia de mulheres e crianças, uma tática que os traidores usam frequentemente” – palavras literais de uma ordem unida só descoberta em 2007 -, não dispararam uma bala.

Harald Jäger, leal de servidor do regime como membro da Stasi, a polícia política, estava no comando de cerca de 50 homens no posto de controle de passaportes da rua Bornholmer .

Também estava esperando o resultado de um possível diagnóstico de câncer no dia seguinte.

A coisa mais importante que fez naquela noite não foi deixar alemães orientais sair, mas voltar.

 Depois de mais de trinta telefonema, seu comandante havia dito que deveria permitir a passagem dos manifestantes mais exaltados.

Um casal que havia deixado os filhos pequenos em casa e dado uma “escapada” só para ver Berlim Ocidental fez um escândalo quando os guardas tentaram impedir sua volta.

Jäger foi chamado e, pela primeira vez na vida, desobedeceu uma ordem. Abriu uma exceção. E outra. E mais outra.

Ninguém segurou mais.

Numa fantástica ironia, o Muro de Berlim caiu pacificamente por causa do pessoal que estava voltando, não saindo.

Ao todo, nas barreiras em Berlim e no resto da Alemanha Oriental, morreram durante o comunismo mais de 1 300 pessoas.

Fuziladas, explodidas por minas, presas e desaparecidas, afogadas ao tentar a travessia por mar ou rio.

O IMPOSSÍVEL ACONTECE

Todo mundo que conhece um pouco de história, a começar por eles próprios, sabe que é difícil ser alemão. A carga do passado pesa, mesmo injustamente,  e a repressão a manifestações de nacionalismo que são normais em outros países é paralisante.

Mas nunca tanta gente, em todos os lugares do mundo, desejou tanto ser alemão para compartilhar da euforia e da felicidade em estado puro daqueles dias estonteantes, quando o impossível aconteceu diante de nossos olhos.

Norman Ohler, outro escritor alemão, da antiga parte ocidental, que escreveu para o Guardian, contou que assistiu a entrevista confusa de Schabowski, entrou no carro, dirigiu 800 quilômetros e chegou a Berlim sete horas depois.

Viu um soldado oriental com uma britadeira derrubar metodicamente a barreira de concreto, também metodicamente retirados por uma escavadeira.

“Cada pedaço aberto era imediatamente lotado de pessoas que iam do Leste para o Oeste. De repente, vi uma jovem de uns 18 anos (a mesma idade que eu) aparecer a meu lado, perguntando entusiasticamente o que tinha lá. ‘Bom, Berlim Oriental’, respondi, surpreso, e ela respondeu que já sabia, na verdade, era de lá e tinha feito a pergunta num contexto muito mais amplo.”

“Foi meu primeiro encontro com alguém de Berlim Oriental e, com sua palavras, ela abriu alguma coisa que continua a me definir até hoje.”

“É a ideia da possibilidade.”

O que “tinha lá”, depois do fim do Muro, é uma pergunta que vai continuar a ser feita. O comunismo implodiu e a Alemanha foi reunificada a jato – talvez antes que certos aliados tentassem evitar o inevitável.

Depois vieram o euro, a integração dos “primos pobres”, a prosperidade explosiva da Alemanha una, a abertura das fronteiras a uma grande massa de refugiados – como alemã oriental, talvez Angela Merkel não pudesse suportar o oposto.

O radicalismo islâmico, o aumento da criminalidade, as dificuldades de integração de tanta gente e a negação pura e simples de que estes problemas existam incentivaram a ascensão da extrema direita.

A história não acaba e o pobre Francis Fukuyama não pode continuar a ser acusado eternamente de ter dito isso ao pé da letra.

O Muro caído, juntamente com o comunismo europeu, “acabou” a história no sentido de que mesmo nos países onde a ideologia prevaleceu, a abertura da economia ao empreendimento privado não teve volta.

O sistema de controle estatal sobre tudo e de abolição da propriedade privada foi para o lixo. 

Maior prova: até a antológica eficiência alemã, que havia produzido um padrão econômico superior ao de outros satélites soviéticos, não serviu para enfrentar ombro a ombro a capacidade de inovação e criação de oportunidades e riquezas do capitalismo.

Mas foi formidável para desmontar em um dia um sistema que parecia blindado para todo o sempre.

E que dia. Emocionante, memorável, grandioso, um daqueles momentos únicos em que todos ficam do lado do bem, até os que estavam do lado do mal.

Miraculoso.

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