A reviravolta provocada pelo coronavírus: direita contra direita
Restrições de movimento, exigência de uso de máscara e até futura vacinação provocam um levante entre conservadores e libertários
O primeiro-ministro Boris Johnson soltou uma bomba esta semana e aqui vai uma amostra das reações ao anúncio de que reuniões acima de seis pessoas passam a ser proibidas, exceto em escolas e ambientes de trabalho:
“Absurdo”, “abuso”, “delírio”, “loucura”, “palhaçada”, “ditadura de partido único”, “o pior é que votamos nesse maluco”, “nunca mais”, “o governo está determinado a arruinar o país” e por aí vai.
O curioso é que os comentários indignados partiram de articulistas e leitores de jornais de direita.
A “revolta dos tories”, como são chamados os adeptos do partido no governo, não vem de agora.
Pela própria definição, o pensamento liberal no sentido clássico é a favor de intervenções mínimas do Estado e nunca, em países democráticos, houve tanta interferência do governo na vida dos cidadãos.
Mesmo sendo menos rigoroso do que na Itália, na Espanha e na França, o governo inglês mostrou uma mão bem visível ao estabelecer que todos os cidadãos, exceto os em atividades vitais, ficariam trancados dentro de casa, com direito a uma saída por dia para se exercitar ou comprar mantimentos.
Todos tinham – e continuam a ter – que usar máscara em ambientes públicos fechados.
Quando tudo parecia voltar ao chamado novo normal, Boris anunciou que voltava a valer o que chama de “regra de seis”: familiares ou amigos só podem se reunir, em casa ou em espaços abertos, nessa quantidade.
Qual a lógica de permitir ou até incentivar a volta aos locais de trabalho, onde dez, vinte ou muito mais pessoas passam várias horas por dia, e proibir um almoço em família ou uma festinha de aniversário?
E por qual argumento lógico doze pessoas podem trabalhar no mesmo ambiente e, quando descem para um restaurante, têm que se dividir entre duas mesas?
Nenhum, obviamente.
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Clique e AssineBoris e lógica passaram a ser palavras mutuamente excludentes, principalmente depois que o próprio primeiro-ministro desenvolveu a versão brava da Covid-19 e saiu do hospital convertido em regulador-mor.
A revolta com a “regra de seis” também dividiu o próprio gabinete, onde ministros importantes, como o da Economia, Rishi Sunak, foram contra a reimposição de restrições de movimento.
Motivo principal: passa uma mensagem negativa num momento em que é vital “tirar do sofá” as pessoas que estão trabalhando em casa ou simplesmente recebendo os salários bancados pelo governo, evidentemente insustentáveis.
Todos os governos cometeram erros no início da epidemia buscando, diante de um fenômeno novo e assustador, o equilíbrio quase impossível entre proteção às redes de saúde, minimização dos contágios e manutenção das linhas vitais da economia.
Mas o governo Johnson tem sido especialmente errático, com decisões estapafúrdias lançadas com estardalhaço e, quando o vexame fica muito evidente, canceladas.
Toda hora um novo país entra na lista dos proibidos, fazendo com que milhares de pessoas suspendam as férias de verão e voltem precipitadamente, receando ser obrigadas a cumprir quarentena de 14 dias.
Ou simplesmente ignorem a quarentena: quando um governo toma decisões consideradas irracionais ou abusivas, o índice de obediência cai.
No mesmo pacote da “regra de seis”, Boris anunciou que “agentes do coronavírus” seriam encarregados de zelar por seu cumprimento e aplicar multas de 100 libras por infração.
Quem seriam essas pessoas, como receberiam treinamento específico e de que forma seriam pagas?
E qual autoridade teriam para chegar numa rave clandestina, mostrar um crachá e mandar todo mundo para casa?
Perguntas sem resposta, evidentemente.
O exemplo da rave foi mencionado porque as aglomerações de jovens em pubs e festas são o combustível para o aumento nos casos de infecção.
A faixa etária onde os contágios aumentaram mais é a que vai dos 20 aos 29 anos.
O número de mortes continua muito baixo, inclusive porque a Covid-19 é muito menos deletéria para os mais jovens.
A revolta contra as medidas de regulamentação do comportamento individual para enfrentar a epidemia costuma ser atribuída, equivocadamente, a malucos conspiracionistas – embora estes existam e continuem a achar que tudo é um plano maligno de Bill Gates associado às redes 5G.
O uso obrigatório é especialmente rejeitado entre os mais identificados com o libertarianismo. “Máscara é focinheira”, virou uma palavra de ordem.
Os protestos contra as máscaras obrigatórias atraíram um público excepcionalmente grande, não só na Inglaterra como na França e na Alemanha, onde se misturaram a extrema direita e os alternativos descendentes do antigo movimento hippie.
Seus adeptos contestam não apenas a obrigatoriedade como a eficiência das máscaras, inclusive porque no início da epidemia as maiores autoridades de saúde pública eram veementemente contra o uso disseminado, fora de ambientes hospitalares.
Para um público subitamente instado a “Seguir a Ciência”, foi um choque descobrir que não existem respostas absolutas emanando de uma instituição superiormente precisa, mas sim uma natural e desejável concorrência entre ideias que devem passar por testes e contestações.
Outra área onde se esboça um confronto de posições ao estilo direita contra direita é a da vacinação.
Nos Estados Unidos, Donald Trump aposta sua reeleição na aprovação de uma ou mais vacinas para o uso em massa.
Mas 35% dos americanos, segundo uma pesquisa Gallup, não tomariam uma vacina grátis e aprovada pela FDA, o órgão regulador de medicamentos.
Entre os republicanos, o partido de Trump, o índice chega a 53%.
Libertarianismo, conspiracionismo ou apenas uma saudável desconfiança em relação a tudo que vem do governo são profundamente arraigados nos Estados Unidos.
Nessa esfera, nem a paixão por Trump dos conservadores de raiz torna uma vacina mais palatável.
Na Inglaterra, em relação a Boris Johnson, os conservadores já perderam qualquer esperança.