Governadores tentam passar a boiada na Anvisa para liberar vacina
Na ânsia de atropelar a agência, que pede documentos, ameaçam fazer da Sputnik V instrumento eleitoral, como Bolsonaro fez com a cloroquina e o chá de alho
Governadores de 14 Estados e prefeitos de duas cidades do Rio de Janeiro (Niterói e Maricá) se engajaram num lobby pela liberação das importações e, também, da produção local da vacina russa Sputnik V, atropelando orientações da equipe de especialistas da Agência Nacional de Vigilância Sanitária.
O interesse legítimo, comum, é ter uma vacina em meio à agonia de um desastre sanitário sem precedentes, com 426 mil mortes oficialmente contabilizadas. E possuem argumentos sólidos para batalhar por uma alternativa.
Um deles é que o governo federal há tempos perdeu o controle da gestão da pandemia. Além disso, Jair Bolsonaro, filhos e alguns ministros demonstram todo empenho em impedir relações estáveis e fluidas com a China, principal fornecedor de insumo básico para a produção nacional no Instituto Butantan (SP) e na Fiocruz (RJ).
Porém, nada justifica interferência indevida, a partir de uma forte pressão política e pública sobre os técnicos da agência reguladora, Anvisa.
Na linha de frente do lobby da Sputnik V estão os governadores do Maranhão, Flavio Dino (PCdoB); do Piauí, Wellignton Dias (PT); do Ceará, Camilo Santana (PT); de Pernambuco, Paulo Câmara (PSB); do Rio Grande do Norte, Fátima Bezerra (PT); de Alagoas, Renan Filho (MDB), e, do Pará, Helder Barbalho (MDB).
Eles montaram um consórcio e para importar 37 milhões de doses, seguindo o exemplo dos presidentes argentino Alberto Fernández e mexicano Manuel López Obrador.
Há meses tentam obter o aval da Anvisa para importação. Sem combinar com os russos para cumprir o ritual previsto nas normas de vigilância sanitária, mobilizaram o Supremo para sucessivas cobranças à agência estatal, em discreta coordenação com um par de interessados: a União Química Indústria, de São Paulo, com direitos de produção de oito milhões de doses e o Fundo de Investimentos Diretos da Rússia, criado pelo governo Vladimir Putin para financiar o desenvolvimento da vacina.
A vacina não foi liberada na primeira rodada de análise, em 26 de abril. Ontem, o chefe da Anvisa foi interpelado na CPI da Pandemia. O relator Renan Calheiros (MDB-AL) quis saber: “Quais são definitivamente os entraves para a autorização de uso da Sputnik V?”
O diretor Antonio Barra Torres, médico, contra-almirante (reserva), foi direto: “No momento de hoje, exato, estamos num ponto em que a análise [para uso emergencial] encontra-se parada para que a União Química forneça as informações. Então, quanto ao uso, esse é o status atual.”
“Quais são as reais perspectivas de correção dos problemas apontados e de obtenção da autorização de uso da vacina?”, continuou Renan.
Barra Torres explicou que o problema está na falta de documentação: “[A chance de solução] é toda do desenvolvedor, de apresentar respostas aos quesitos já, por várias vezes, solicitadas. Tão logo apresentem, a análise será feita dentro do prazo legal, e o nosso posicionamento será firmado. Não se deve somar a esta marca Sputnik V nenhum pensamento negativo. Isso faz parte do processo.”
A negativa preliminar irritou governadores, prefeitos, a seção política da União Química, dirigida pelo ex-deputado Rogério Rosso (PSD-DF), e o principal executivo do fundo russo, Kirill Dmitriev, que insinuou um processo contra a Anvisa.
Dmitriev vê na decisão mais uma intriga internacional, parte jogo geopolítico Rússia-Estados Unidos. “Quando falo de política, não é nossa opinião, é fato, os EUA disseram que queriam convencer o Brasil a não usar a vacina russa”, disse ao repórter Assis Moreira, do Valor. Ele tem seus motivos. Sabe-se que, realmente, o governo Donald Trump atuou — e continua — junto ao Itamaraty e à presidência da República para bloquear eventual expansão da “influência” russa e chinesa em negócios no país.
O problema, porém, continua na mesa —a escassez de documentos sobre a Sputnik V. A pedido dos governadores, o juiz Ricardo Lewandovsky, do Supremo, deu “48 horas” para a Anvisa se justificar. Ela cumpriu a ordem em meio dia.
Ontem, o diretor da agência falou por seis horas na CPI da Covid. Foi provocado pelos parlamentares, sobretudo os do Nordeste, sobre a Sputnik V a cada quatro minutos. O problema continuou na mesa —falta documentação sobre a vacina.
Numa consulta a 58 países, 24 responderam que não estão usando a Sputnik V, 11 não deram resposta e outros não têm certificação de classe mundial, receberam pequenas quantidades ou alegaram “confidencialidade”contratual (México). Da Argentina, onde a liberação de importação foi uma decisão de governo e não da agência reguladora, a Anvisa recebeu quatro páginas de relatório sobre a participação da vacina russa no programa local de imunização: ela responde por 57% da vacinação dos argentinos e por 92% dos “efeitos adversos” — não necessariamente graves — constatados em pessoas vacinadas.
O lobby dos governadores e prefeitos tem repercussão política, e impõe desgaste à credibilidade técnica da Anvisa, mas não resolve o problema na mesa — a falta da documentação necessária.
Na ânsia de atropelar a agência, ameaçam transformar a vacina Sputnik V num instrumento político-eleitoral. Assim como Bolsonaro fez com a cloroquina, o “kit-Covid” e até o chá de alho.
Ano passado, depois da tentativa de mudar a bula da cloroquina, o presidente estava na rua, em campanha pela reeeleição, quando encontrou uma senhora. Ela contou-lhe ter descoberto a receita para a “cura” da Covid-19: um chá de alho. Bolsonaro se prontificou: “Eu te arranjo amanhã, se precisar conversar lá… alguém para conversar com a senhora no Ministério da Saúde, tá ok? Pode ser? Deixa o telefone.”
A vacina russa é coisa séria e, por óbvio, incomparável às pílulas, elixires ou gotas miraculosas prescritas na rotina do Palácio do Planalto. No entanto, a atual ofensiva dos governadores e prefeitos da oposição para “passar a boiada” na Anvisa contém traços de similaridade com os métodos do presidente-candidato.