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A morte brutal do rei

Assassinado há 110 anos, D. Carlos I, de Portugal, inspirou em vida uma das melhores receitas de bacalhau

Por J.A. Dias Lopes Atualizado em 30 jul 2020, 20h36 - Publicado em 15 jan 2018, 17h22

Loucos por bacalhau, os portugueses dizem ter mais de 1.000 receitas com esse peixe salgado e desidratado, capturado nas águas frias dos mares que circulam o Polo Norte. Dividem-nas em clássicas e inovadoras, em entradas e acompanhamentos, em preparações feitas no forno, no fogão e no micro-ondas, com grãos ou massas. Entre as clássicas, sobressaem-se os bacalhaus à Brás, da Consoada, Espiritual, à Gomes de Sá, à Lagareiro, à Zé do Pipo etc. São tantas que sempre se esquecerá de arrolar alguma mais importante.

Entretanto, a receita do momento é o Bacalhau Nunca Chega, pela suposição de que estaria festejando cem anos de criação. Para completar, relaciona-se com D. Carlos I, Rei de Portugal e Algarves de 1889 até o seu assassinato por dois republicanos ensandecidos, a 1º de fevereiro 1908, portanto há 110 anos. Tem preparo relativamente simples. Demolha-se o peixe seco e salgado, cozinha-se rapidamente em leite ou água, escorre-se, desfia-se em tiras e doura-se no azeite, com cebola, presunto e salsinha; a seguir, incorpora-se ovos batidos à mão e pimenta-do-reino moída; no final, acrescenta-se batata-palha.

Segundo o escritor, militar e diplomata francês Jean Pailler, no livro “D. Carlos I, Rei de Portugal” (Bertrand Editora, Lisboa, 2002), o soberano assassinado foi provavelmente o mais culto dos monarcas lusitanos. Adorava as artes, pintava divinamente, sobretudo aquarelas, que lhe deram  prêmios internacionais; aprofundou-se em oceanografia e biologia marítima; estudou as aves lusitanas, sobre as quais publicou um belíssimo catálogo ilustrado.

Também era notável desportista, jogava tênis, golfe e se interessava pelos esportes náuticos; estimulou a difusão do futebol em Portugal, assistindo jogos e promovendo a primeira disputa Lisboa-Porto. Fez tudo isso aproveitando a vida, cortejando as mulheres bonitas e levando a sério os deveres governamentais em tempos difíceis para sua coroa. Adorava caçar e tinha pontaria certeira. No momento do atentado, porém, seus assassinos não lhe deram tempo para sacar o revólver Smith & Wesson calibre 32, que levava no bolso do capote. D. Carlos I nasceu em 1863, no Palácio Nacional da Ajuda, de Lisboa.

O povo lusitano conta que um dia ele apareceu inesperadamente em uma de suas sete quintas. Chegava de uma caçada pouco satisfatória. Como sentisse fome, pediu algo para comer. A cozinheira se desesperou, pois a despensa da quinta estava praticamente vazia. Recuperando a calma, conseguiu juntar um pouco de bacalhau e de presunto, além de cebolas, ovos e batatas.

Então, improvisou para o rei um prato que  combinava aqueles escassos mantimentos com salsinha, pimenta-do-reino e a batata-palha frita na hora. D. Carlos I. gostou tanto da comida que a repetiu sem parar. Assim surgiu o Bacalhau Nunca Chega. Entretanto, uma versão divergente, menos aceita, sustenta que a receita já existia e a cozinheira apenas a seguiu. Quanto ao nome do prato, ninguém duvida:  foi dado por não haver nada que chegasse para o apetite do rei.

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Os facínoras atacaram D. Carlos I quando ele atravessava de carruagem o Terreiro do Paço, junto ao rio Tejo, em Lisboa. Estava acompanhado da mulher, a rainha D. Amélia de Orleães, filha do Conde de Paris, e dos dois filhos do casal, o príncipe herdeiro D. Luís Filipe e o infante D. Manuel. A família real acabava de chegar de vapor, procedente do Palácio de Vila Viçosa, perto de Borba, no Alentejo, um dos seus recantos favoritos.

Os cavalos que puxavam a carruagem mal começaram a trotar quando um homem barbudo encostou o joelho no chão e puxou o gatilho de uma carabina Winchester. O primeiro tiro acertou o pescoço de D. Carlos I, matando-o imediatamente. O segundo atravessou seu ombro esquerdo e o impacto fez com que tombasse sobre a rainha D. Amélia. Outro homem, com bigode de pontas reviradas, sacou uma pistola Browning FN 1900, calibre 7,65, subiu no estribo da carruagem e disparou mais duas vezes no corpo sem vida do soberano.

Completamente descontrolada, D. Amélia batia na cabeça do homem de bigode de pontas reviradas com um impotente ramalhete de flores. Mas o assassino ainda conseguiu executar o príncipe herdeiro D. Luís Filipe. Na sequência, feriu no braço o infante D. Manuel. Os dois fanáticos queriam eliminar a família real e proclamar a república. Jamais se descobriu se agiram sozinhos ou se tinham cúmplices, porque a polícia abateu a dupla ali mesmo.

O barbudo da carabina era Manuel Buíça, um professor do ensino livre; o de bigode revirado com a pistola se chamava Alfredo da Costa e trabalhava no comércio. Alguém tentou comparar o regicídio (assim falam os portugueses) com a execução de Luís XVI, em 1793, na Praça da Concórdia, de Paris. Antes de guilhotinar o rei, porém, a Revolução Francesa (1789-1795) teve o cuidado de patrocinar  um processo fantoche.

D. Carlos I foi sucedido pelo filho sobrevivente, D. Manuel II, chamado de “o Desaventurado”, que casou e não teve descendência.  Último soberano de Portugal e Algarves, reinou do assassinato do pai, em 1908, até ser deposto em 1910, com a proclamação da república. D. Manuel II morreu exilado em Londres. O mesmo aconteceu com sua mãe, D. Amélia, mas na França.

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D. Carlos I
D. Carlos I: não havia comida que chegasse para o rei, vindo de uma caçada de pouco sucesso (Wikimedia Commons/Divulgação)

D. Carlos I era filho de D. Luís I, trigésimo terceiro soberano de Portugal, e da princesa piemontesa D. Maria Pia de Saboia, cujo pai Vittorio Emanuele II se tornou o primeiro rei da Itália reunificada. Revelou-se bom garfo desde criança. A mãe extremosa, mulher elegante e refinada, cuidou pessoalmente da educação de D. Carlos I, inclusive à mesa. Ele sabia comer bem, adorava bacalhau, sardinha grelhada, canja de galinha, frango assado e azeitonas; e apreciava bons vinhos.

O casamento dos seus pais, D. Maria Pia e D. Luís I, começou como um conto de fadas. A ex-princesa italiana, apesar do temperamento forte, ficou conhecida em Portugal como “O Anjo da Caridade” e “A Mãe dos Pobres”, pelo empenho nas causas sociais. Geralmente não se envolvia nos assuntos políticos. D. Luís I, pai de D. Carlos I, era homem de sensibilidade artística. Compunha e tocava violoncelo e piano, fazia traduções de Shakespeare e falava corretamente línguas europeias,

Infelizmente, os dois filhos de D. Maria Pia com D. Luís I tiveram um final de vida triste. Sobre D. Carlos I já sabemos bastante. Quanto ao seu único irmão, D. Afonso, Duque do Porto, foi na juventude e idade adulta um bon vivant. Era fanático por automóveis e velocidade. Tanto que recebeu o apelido de “Arreda”. Corria pelas ruas de Lisboa e assustava os pedestres. Conta-se que, por isso, gritava ao volante sem parar: arreda, arreda! (afasta, afasta!). Era para as pessoas saírem da frente. Daí o apelido “Arreda”.

D. Afonso casou aos 52 anos com a norte-americana Nevada Stoody Hayes. Tratava-se de uma mulher divorciada quatro vezes, experiente caçadora de homens ricos ou famosos. A família real lusitana se opôs à união com D. Afonso com a norte-americana e o Duque do Porto se afastou dos parentes. Faleceu em Nápoles, na Itália, abandonado pela mulher, deitado numa cama que tinha folhas de jornal no lugar dos lençóis.

Já a rainha-mãe D. Maria Pia padeceu sucessivos revezes. Sobreviveu corajosa ao assassinato do filho  D. Carlos I e do neto D. Luís Filipe, mas não suportou muito tempo a dor. Morreu exilada no seu Piemonte natal, mentalmente desequilibrada. Nos últimos anos, regava as flores de mentira dos tapetes do palácio.  Mesmo assim, antes de fechar os olhos para sempre, pediu que virassem seu leito na direção de Portugal, país onde viveu durante quarenta e oito anos. Os contos de fada podem ter final triste.

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BACALHAU NUNCA CHEGA – SERVE 6 PORÇÕES

INGREDIENTES

4 postas de bacalhau português de 200g cada

700ml de leite (aproximadamente)

4 colheres (sopa) de azeite de oliva

2 cebolas cortadas em finíssimas fatias

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80g de presunto cru cortado em finas tirinhas

9 ovos ligeiramente batidos à mão

5 xícaras (chá) de batata-palha

Salsinha picada a gosto

Sal e pimenta-do-reino moída na hora a gosto

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PREPARO

1. Coloque as postas de bacalhau de molho em água, na geladeira, por cerca de 36 a 48 horas , trocando a água seguidamente.

2. Escorra o bacalhau, cozinhe-o rapidamente (levantando uma fervura) no leite, escorra-o  e depois passe-o em água gelada, para ganhar textura.

3. Retire as peles, as espinhas e desfie o bacalhau em finas tiras.

4. Em uma frigideira grande, doure o bacalhau no azeite previamente aquecido, junto com a cebola, o presunto e a salsinha, mexendo sempre.

5. Nesse momento, vá adicionando os ovos crus, aos poucos.  Tempere com pimenta e, sem parar de mexer, deixe em fogo baixo até a mistura ficar homogênea e os ovos terminarem de cozinhar.

6. Desligue o fogo e, imediatamente, misture a batata-palha. Corrija o sal (se necessário) e sirva em seguida, polvilhando com um pouco mais de salsinha.

Receita preparada por Patrícia Sampaio, chef do restaurante A bela Sintra, de São Paulo, SP 

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