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Por Flávio Ricardo Vassoler
Um olhar para o cotidiano histórico e cultural da Rússia - mas muito além do futebol
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Saturno devorando a um de seus filhos?

Sobre a conversa de dois velhos em uma taverna nas cercanias da Lubianka, praça onde fica o prédio que já abrigou o temível KGB

Por Flávio Ricardo Vassoler
Atualizado em 30 jul 2020, 20h25 - Publicado em 18 jun 2018, 08h20

Nas cercanias da Lubianka, praça onde fica o prédio que já abrigou o temível KGB (Comitê de Segurança do Estado), encontro uma taverna que mais parece um bunker: 13 degraus abaixo do nível da calçada, a porta de entrada, espessa e enferrujada, desvela um ambiente esfumaçado e de teto baixo. A névoa dos cigarros e charutos fica dando volteios letárgicos, como se, por aqui, o tempo tivesse sido coagulado. A iluminação algo trôpega só se projeta de fato sobre as mesas de bilhar – o choque das bolas só não é mais recorrente do que os tragos cabisbaixos e melancólicos dos bêbados que parecem ter saído de uma tela notívaga de Van Gogh.

Em um canto da taverna, entreouço dois velhos (ambos com a voz rouca, porém enérgica) em uma discussão acalorada. Estreito os olhos para conseguir discerni-los, mas a penumbra só me deixa entrever a barba longa e desgrenhada de um e parte da careca que o outro tenta escamotear com aquilo que parece ser (talvez um dia até tenha sido) uma boina. Só chega até mim, com mais vivacidade, o brilho da borda dos muitos copos (uísque ou conhaque?) e copinhos (vodca, certamente) que se acumulam sobre a mesa.

Quando aprumo os ouvidos, no entanto, consigo escutá-los bem. Pego o bonde andando, mas, ainda assim, tento capturar a discussão, como se eu mesmo dela estivesse participando – como se, a bem dizer, eu mesmo estivesse me engalfinhando com Vladimir (o barbudo) e Estragon (o careca) – à falta dos nomes reais que eu jamais vou descobrir, chamemo-los assim.

Os fragmentos que você lerá a seguir procuram dar algum tipo de ordem (e, quiçá, sentido) ao caos de colocações/acusações, réplicas e tréplicas que Vladimir e Estragon arremessam e empilham como os escombros de uma época a que eles, sem saber como, acabaram sobrevivendo.

Vladimir: Me responda, camarada, vamos: Lênin e Stálin foram políticos ou cientistas?

Estragon: Revolucionários, Vladimir Vladímirovitch: eis o que eles de fato foram.

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Vladimir: Ora, Estragon, deixe lá de nostalgia depois de tanta birita – e pare de coçar esse cocuruto, isso me dá aflição! Agora ouça: quem afirma que Lênin e Stálin foram políticos se lembra da virtude que a dupla dinâmica demonstrou para se aproveitar da Fortuna e levar a cabo a Revolução. Quem afirma que ambos foram cientistas pensa sobre a Nova Política Econômica, de Lênin, e sobre os planos quinquenais, de Stálin, como a base para a modernização da Rússia.

Estragon: Não à toa Stálin bem pôde dizer: “Da Revolução até o meu reinado, a Rússia passou do arado de ferro à bomba atômica”.

Vladimir: Quanto a isso, Estragon, nós concordamos inteiramente – muito embora Stálin, com ainda mais autoridade nesse quesito, também sentenciasse: “O único local de plena concórdia é o cemitério”.

Estragon: Por falar no defunto, Vladimir Vladímirovitch, você ainda não o enterrou: afinal, Lênin e Stálin foram políticos ou cientistas?

Vladimir: Políticos, camarada, sem dúvida. Se Lênin e Stálin tivessem sido cientistas, meu caro, eles teriam feito seus experimentos, primeiramente, com ratinhos de laboratório.

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Estragon: Foi tudo tão trágico assim?

Vladimir: Há quem diga que poderia ter sido ainda pior.

Estragon: Devem ser os mesmos que sabem que o fundo do poço é o refúgio dos otimistas.

Vladimir: É por isso que eu digo que Tchékhov sabia das coisas – o ceticismo de Anton Tchékhov é cirúrgico: “As massas sempre tendem ao antropomorfismo na religião e na moral e gostam mais do que tudo daqueles ídolos que têm as mesmas fraquezas que elas”.

Estragon: Quanta resignação, hem?

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Vladimir: Não, não, camarada: quanta lucidez!

Estragon: E quanto a Khruschov?

Vladimir: O que tem o velho Nikita beberrão e bom de briga?

Estragon: Naquele famigerado 20º Congresso do Partido, em 56, ele botou as asinhas de fora e ousou dizer, com a exasperação que lhe era peculiar, que Stálin tinha sido responsável pela perseguição, aprisionamento e morte de milhões de russos.

Vladimir: Imagine o silêncio no Soviete Supremo, camarada, enquanto Khruschov inventava a roda para todos aqueles cúmplices.

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Estragon: Silêncio? Coisa nenhuma, Vladimir Vladímirovitch! Súbito, algum lunático anônimo pega carona na coragem do velho Nikita e o interpela com o dedo em riste: “Ora, camarada Khruschov, só agora essa revelação vem à tona? O camarada não sabia disso antes? Por que esperar pela morte de Stálin para exumar os cadáveres?”

Vladimir: Eita! E o que foi que Khruschov fez?

Estragon: Com a mesma exasperação ferina de seu padrinho político – ninguém mais, ninguém menos que o bigodudo Ióssif Stálin –, Khruschov começa a vociferar: “Mas quem foi que disse isso? Apareça, vamos! Quem foi que disse isso? Quem foi?!”

Vladimir: Mas, camarada, vamos lá: você acha mesmo que é possível fazer uma omelete sem quebrar ovos?

Estragon: Só consigo te responder como Tolstói, certa vez, respondeu para Górki.

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Vladimir: E o que foi que ele disse?

Estragon: O revolucionário Górki, com o pathos que lhe era próprio, só fazia argumentar e gesticular a favor da queima da plantação (a terra arrasada) para que, sobre as cinzas e os escombros do passado arcaico, os novos frutos despontassem sem peias ou amarras. Górki reverberava o Bazárov de Turguêniev, para quem apenas a negação mais contumaz de toda e qualquer tradição alçaria a Utopia para além da inexistência do Éden. Para Górki, a imagem da sociedade igualitária e emancipada coincidia com a liberdade irrestrita da águia – o voo nômade do predador que não tem raízes (e que, por sua vez, também não tem quaisquer predadores).

Vladimir: E o que foi que Tolstói redarguiu?

Estragon: Enquanto Górki argumentava com requintes de paixão intensificados por seu período na Itália, Tolstói só fazia cofiar a barbona branca ainda mais desgrenhada do que a sua, Vladimir Vladímirovitch. Súbito, ele estanca a mão direita, à altura do queixo, e pergunta para Górki: “Quer dizer que a liberdade se assemelha ao voo indômito e sem raízes da águia?” Assim que Górki exclama seu “Sim!” supostamente triunfal, o semblante de Tolstói se transfigura com a sabedoria do oráculo para redarguir: “Só não se esqueça, meu caro, de que até mesmo os pássaros fazem ninhos”.

Vladimir: Ai, essa foi bonita – e doeu: mas que chicotada!

Estragon: Não foi?

Vladimir: Mas, na verdade, camarada, você e Tolstói estão parecendo aquela “bela alma” de que Hegel falou certa vez – aquela alma pura que, para permanecer bela, procura manter a devida distância do charco da vida real. Ora, é claro que, assim como o aristocrata Tolstói, essa alma pura e bela tem o privilégio de não precisar sujar as mãos e os pés com o chão sofrido da vida. Quando a história é analisada a partir da estufa do escritor/pensador – para sermos mais precisos, quando a história é vislumbrada a partir do cume longínquo sobre o qual Jesus Cristo proferiu o Sermão da Montanha –, o mundo parece despontar ora como o reino da concórdia, ora como a outra face que se oferece ao inimigo a quem devemos perdoar. Mas, camarada, nós não devemos esquecer a máxima do revolucionário Saint-Just, para quem “ninguém governa sem culpa”. Lembre-se, meu caro, de que Saint-Just forjou essa máxima ao lado da verdadeira parteira da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão: a guilhotina!

Estragon: Ora, Vladimir Vladímirovitch, se bem me lembro, Saint-Just não acabou sendo abortado pelo mesmo útero que o pariu? Afinal, se ninguém governa sem culpa, a culpa também pode decapitar aqueles que com ela governam. Por sinal – e em tempo: todo esse papo sobre incesto/canibalismo político e histórico me levou ao meu quadro favorito: Saturno devorando a um de seus filhos.

Vladimir: Ora, camarada, quer dizer então que você corrobora a denúncia de Francisco Goya contra os fuzilamentos supostamente antimonarquistas, mas, na verdade, sumários, vingativos e reacionários que foram levados a cabo pelas tropas republicanas e libertárias de Napoleão, quando o espanhol pintou o Três de Maio de 1808 em Madri?

Três de maio de 1808 em Madri (1814), do pintor espanhol Francisco Goya (1746-1828) (Museu do Prado/Reprodução)

Estragon: Vladimir Vladímirovitch, me responda: se você soubesse que a Revolução Francesa culminaria no Terror e no imperialismo napoleônico; que a Revolução Russa culminaria no totalitarismo estalinista e na escravidão do Gulag; e que o ímpeto democrático após o colapso da nossa União Soviética culminaria no neotsarismo de Vladimir Putin, você não diria que o Três de Maio de 1808 em Madri, ao fim e ao cabo, sempre culmina em Saturno devorando a um de seus filhos?

Saturno devorando a um de seus filhos (1819-1823), do pintor espanhol Francisco Goya (1746-1823) (Museu do Prado/Reprodução)
Sobre o autor

Flávio Ricardo Vassoler, escritor e professor, é doutor em Teoria Literária e Literatura Comparada pela FFLCH-USP, com pós-doutorado em Literatura Russa pela Northwestern University (EUA). É autor das obras O evangelho segundo Talião (nVersos, 2013), Tiro de misericórdia (nVersos, 2014) e Dostoiévski e a dialética: Fetichismo da forma, utopia como conteúdo (Hedra, 2018), além de ter organizado o livro de ensaios Fiódor Dostoiévski e Ingmar Bergman: O niilismo da modernidade (Intermeios, 2012) e, ao lado de Alexandre Rosa e Ieda Lebensztayn, o livro Pai contra mãe e outros contos (Hedra, 2018), de Machado de Assis. Página na internet: Portal Heráclito, https://www.portalheraclito.com.br.

 

 

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