Sabor do tempo
Um espelho revelador me trouxe a imagem do homem velho, sozinho diante da sua cerveja pós-almoço, imerso num mundo inacessível para o resto do mundo
Heraldo Palmeira
Fazia um calor infernal naquela tarde já avançada. O ar refrigerado do restaurante aliviou um pouco o mal-estar alastrado por todos os cantos da cidade. Finalmente meus horários incertos — ainda mais num sábado — entraram em sintonia com o horário da famosa feijoada semanal servida ali.
Bastou eu entrar no salão para que o velho garçom abrisse aquele tradicional sorriso de acolhimento e viesse ao meu encontro de braços abertos. Ainda caminhando para me acomodar, ele já perguntou se eu queria minha caipirosca de lichia, com Absolut e adoçante. Profissional!
O costume de comer sempre mais tarde termina garantindo acesso às mesas que mais me atraem nos restaurantes — naquele, uma que guarda distância apropriada do palco onde bons músicos vão se revezando pelo repertório refinado.
Depois do pão italiano inevitável, com azeite, fui me enfronhando na feijoada espetacular e seus complementos, até chegar ao arroz doce de arremate, na soleira do cafezinho final.
Numa das pilastras, um espelho revelador me trouxe a imagem do homem velho, sozinho diante da sua cerveja pós-almoço, alheio à música e ao ambiente ao redor. Rosto enrugado, olhar entrado num mundo inacessível para o resto do mundo. Entregue a falas e gestos por certo destinados a memórias e figuras invisíveis que passaram a povoar seu cérebro. Provável consequência do tempo e dos catabis particulares que sacolejaram sua jornada, desenhada naquele semblante de solidão.
Eu nunca vira aquele homem. Era familiar ao restaurante e o restaurante parecia ter se transformado no que lhe sobrou de alento. Mas ele ultrapassou aquela linha tênue da saudade prévia que a gente sente de vez em quando, do afeto comovido, da dúvida do amanhã.
Fui embora e ele ficou. Saí me perguntando se haverá tempo no tempo dele e no meu tempo para vê-lo novamente em uma daquelas mesas. Mesmo que eu entre e saia sem lhe dirigir sequer um aceno, que ele continue apenas um estranho sem nome, eu vou ficar feliz ao vê-lo ali outras vezes.