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Por Coluna
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Dores escolhidas

Não queríamos repetir a mania dos realmente velhos, que danam a trocar momentos de satisfação por lamúrias, falar de doenças

Por Heraldo Palmeira
Atualizado em 30 jul 2020, 20h07 - Publicado em 1 dez 2018, 13h02

Heraldo Palmeira

A feijoada do sábado no boteco da esquina estava prometida há tanto tempo e sempre aparecia alguma milacria na agenda para atrapalhar. Ele era da música, ambiente em que nos conhecemos havia mais de vinte anos. E vinha há outros muitos numa luta enorme de sobreviver, não tinha mesmo como preferir uma feijoada adiável diante de um trabalho qualquer que fosse.

Finalmente o nosso sábado prometido e ele chegou devagar, eu o vi descer do ônibus e atravessar a rua como que medindo cada passo. O abraço apertado, nossas palavras de ordem ordenando o carinho que consagra uma amizade em amor, e o respeito erguido e celebrado pela admiração.

Reclamou da dor cotidiana, ininterrupta num dos joelhos. “O maldito menisco!” falou como se falar soasse bálsamo e alívio. Como se me apresentasse um desconhecido. Como se eu não tivesse os meus próprios meniscos escondidos, à espreita da fadiga mais dia, menos dia. Uma maldita cartilagem que serve para ajudar o funcionamento da articulação do joelho, realizar a improvável tarefa de amaciar o contato dos dois ossos da perna que recebem nosso peso e sustentam o caminhar.

Preferimos obviamente dar atenção direta à cerveja que chegaria em segundos, sempre nas tradicionais garrafas “mofadas” que faziam a fama do lugar. Não queríamos repetir a mania dos realmente velhos, que danam a trocar momentos de satisfação por lamúrias, falar de doenças. E o prazer daquele (re)encontro era raro para ser desperdiçado com “ais” e “uis”.

Eu conhecera aquele bom sujeito num estúdio de gravação. Fizemos dois discos juntos, eu produzindo, ele na engenharia de som. Falamos das atividades que estavam nos ocupando agora, das expectativas, do povo de casa, do que poderia vir depois. Presente a velha preocupação com o amanhã que nos tira o sossego desde muito antes de ontem.

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A primeira cerveja desceu como o paraíso refrescante em cascata, inebriando o interior. Um freio de arrumação para sossegar qualquer inquietude da alma. Ao menos pelos próximos trinta segundos, uma pitada de eternidade na região do prazer.

Falamos de muitas coisas e, natural pela idade em que estamos, da velhice que está ali do outro lado da rua querendo namorar com a gente na marra. Claro que o tempo marcaria presença na nossa conversa.

Falamos da crise da música, do vazio criativo, da saudade dos grandes momentos. Lembramos Elis, de uma entrevista na tevê onde citava o custo muito alto dos discos como motivo de afastamento do público. Mal sabia ela que chegaria um tempo em que o negócio ficaria ainda pior, a capacidade criativa sumiria de circulação e aquilo tudo ficaria sem valor.

Desabrida como sempre, falava de tudo com coragem, inclusive do estado já decadente do sistema, das canalhices nas relações profissionais, da postura individualista de artistas e músicos, que terminaram sendo as principais vítimas da falência do mercado.

“Desacostumamos disso, da coragem. Hoje temos de aturar esse mundo de tantas aparências frágeis, de bocas caladas, de todos escondidos”, ele disse com o copo suspenso na mão esquerda, como se tivesse parado num sinal fechado a caminho do próximo gole.

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No finalzinho do papo, perguntada a respeito dos então novos intérpretes que estavam surgindo, foi taxativa a respeito da qualidade artística da sua geração: “Desculpa a falta de modéstia, mas a nossa geração foi ‘o seguinte’! Feijoada, mesmo, fomos nós que fizemos. Nós é, né? Fazer o quê?!” ela falou com aquela ginga premeditada que a deixava linda e diabólica!

A nossa feijoada chegou, magrinha, preparada com esmero e trazida pelo velho garçom que também transita pela cozinha, que sempre me cumprimenta quando passo na porta do sujinho indo ou voltando do trabalho. E veio mais uma cerveja, tão “mofada” quanto a primeira.

“Estamos ficando velhos!”, reclamou meu amigo. Eu disse que sim, mas que não era motivo para mudarmos o passo. “Temos de seguir vivendo, não há como parar”, completei. Era preciso considerar que sempre existem bons motivos para insistir, tentar compreender o mecanismo da existência, encarar o envelhecimento sem tanto desânimo. Afinal, virá de qualquer maneira e nossa postura diante dele poderá piorar ou atenuar o convívio.

Lembrei de trechos de um poema que tinha muito a ver com o semblante acabrunhado que se forma diante da velhice.

Sob o olhar alheio
Velho é ridículo
Quanto mais à vontade, mais ridículo
Quanto mais fala, pior parece
Se antigo, é indesejado
Se ‘pra frente’, evitado
Se corre para pegar o ônibus, desajeitado
Capenga, dolorido, coitado
Se fala de dores, insuportável, abandonado
Se se veste sóbrio, tadinho, quadrado
Se se veste jovem, não se vê, descolado
Se fica na sua, infeliz, mofado
Se pinta o cabelo parece bruxa
Se o deixa branco parece velho
Se correto e educado, ultrapassado
Se ‘boca suja’, inconveniente, desbocado
Se dirige, irresponsável
Se não dirige, um encostado
Se tem dinheiro é procurado
Se é pobre, um fracassado
Se esquece nomes, demente, senilizado
Se lembra tudo, um fofoqueiro danado
Se magrinho, doente desenganado
Se gorducho, comilão desequilibrado
Artrose, arritmia, depressão
Colesterol alto, AVC, infartado
Se feliz risonho, bobo alegre
Se carrancudo, rabugento mal humorado
Deuses, Buda, todos os santos
Benzedeira, pai de santo, saravá
O que será de nós, pobres coitados?

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Que velhos que somos, se mal deu tempo de ver o tempo passar, se nem entendemos o que foi ser jovem? O que são as dores de corpo diante das lembranças dos prazeres de corpo provocados e vividos?

Enquanto os sinais de prazeres e desprazeres se misturam, como a tinta que tenta pintar o cabelo, como a briga da dieta com a vontade de comer, capengas, doloridos, coitados de todos os tratados e regras que insistem em infernizar. Porque enquanto houver vida, só nos resta viver. Eu sei, nada será como antes, mas ninguém sabia antes como seria o depois.

Portanto, se outro cabeludo aparecer na sua rua, eu ainda moro nessa mesma rua. Você ainda quer morar comigo? Sofro calado, a voz é um instrumento que eu não posso controlar. É só poesia, eu só preciso ter tudo aquilo por mais um dia. E a terra continua azul da cor do seu vestido, e o girassol tem a cor do seu cabelo. Eu só desejo mais uns instantes para saborear a vida como uma maravilha nua. Se eu morrer não chore não, é só a lua. E alguém vai lembrar de olhar. Até sempre.

E haverá outras eternidades para que nada seja eterno em um só lugar. Ora se haverá! Ou Deus não seria perfeito nesse jogo de brincar de ser criança e envelhecer, de viver e morrer, à imagem e semelhança.

Mais uma cerveja “mofada” foi posta. Unanimidade naquelas mesas, ignorando diferenças e indiferenças, juventudes e velhices, silêncios e sons. Apenas vivendo o tempo de esvaziarem a garrafa. Sem medos, sem dramas, sem perguntas incômodas, nem aí para o fato de cada um ter uma opinião formada a respeito dela. Muito menos aí para o futuro incerto da garrafa vazia.

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O que importa se estarei triste ou feliz, se ninguém vai querer saber? A dor e a alegria serão minhas, as pessoas continuarão a passar ao lado sem me ver. Talvez seja mais certo não querer enxergar tudo, apenas aquilo que cabe no olhar. Sem perguntas, sem respostas, ora mais medo ora menos medo, sendo apenas o que pode ser.

Ah, os tempos em que a gente achava que enxergava tudo… Nunca existiu aquela visão, acreditamos na sua ilusão. Sim, a gente acredita no que quer e bem entende e depois fica sem entender quando não entende.

A ladeira da rua continuará ali, pouco importando a dor no joelho. Subir ou não vai trazer ou afastar o prazer da cerveja “mofada” e da feijoada magrinha, preparada com esmero e trazida pelo velho garçom que também transita pela cozinha.

Eu não boto fé nessa loucura, nesse medo onipresente. Eu não gosto de quem me arruína em pedaços. Mas não sou louco o suficiente para ignorar o temor de não dar conta de subir a ladeira ou de descer desembestado.

Mas também não quero perder o sono por isso. Pra que morrer do tiro que não levei? Posso achar prazeres no terreno plano, dar sentido ao devagar e sempre, fazer minhas
juras secretas, aquelas que o coração não diz.

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Há cervejas “mofadas” e feijoadas magrinhas por toda parte. E velhos garçons que também transitam pelas cozinhas e cumprimentam seus clientes que estão indo ou vindo do trabalho. É assim desde que o mundo é mundo e será enquanto vida houver, porque sempre haverá alguém envelhecendo. Deixando de ser o jovem do minuto anterior, pois estará mais velho quando chegar o minuto seguinte.

Do que adiantará ficar fazendo a conta desse tic tac teimoso que só anda para a frente? Quem tentou parar ficou para trás e todos se foram. Por isso é melhor não atrasar, apenas bater estrada torcendo para dar tempo de ir e voltar onde valer a pena rever. Pode até sobrar tempo para outros assuntos que nem eram malditos, apenas nunca foram ditos.

O amigo e eu já estávamos ficando mofados de tanta cerveja, rindo muito, rindo de tudo, de nós, até do que não era risível. Daí a pouco já estaríamos pensando em jantar. Nos levantamos apoiando nas cadeiras, rindo mais um pouco de nós talvez, o melhor riso que existe.

O velho garçom que também transita pela cozinha me ajudou a colocar meu amigo no táxi do ponto da esquina, motorista antigo no bairro rindo de nós sem entender que estávamos rindo dele também.

Depois, o velho garçom atravessou a rua comigo para me esquivar dos carros que pareciam embriagados a olho nu. Claro que eu estava muito bem, apenas não é qualquer um que tem esses luxos de ser levado em casa daquele jeito. Tão firme a ponto de enxergar como o mundo estava rodando perigosamente.

Encostei a porta devagarinho e me atirei na cama. A última coisa de que me lembro foi ouvir a voz de Deus cantando Nada a fazer senão esquecer o medo…

Trechos de:
E os velhos? (Ana Nunes)
Inspirações incidentais:
Só nos resta viver (Angela Rô Rô)
Nada será como antes (Milton Nascimento-Ronaldo Bastos)
Detalhes (Roberto Carlos-Erasmo Carlos)
Um girassol da cor de seu cabelo (Lô Borges-Márcio Borges)
Sofro calado (Milton Nascimento-Regis Faria)
Canções e momentos (Milton Nascimento-Fernando Brant)
Beijo partido (Toninho Horta)
Jura secreta (Sueli Costa-Abel Silva)
Caçador de mim (Luiz Carlos Sá-Sérgio Magrão)

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