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IA alimenta aplicativos que permitem interagir com parentes já falecidos

É um bonito passo, mas que carrega questões éticas

Por Marília Monitchele Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO 16 dez 2023, 08h00

No Natal do ano passado, a família do comerciante Salvador Portal se reuniu para ouvir a leitura de uma carta. Na voz de Salvador, a missiva ganhou contornos emocionantes para a mulher, Maria Catarina, enternecida com os agradecimentos pelo companheirismo de uma vida inteira juntos. Para os filhos Wagner e Angélica, também presentes ao encontro familiar, houve comoção idêntica. Choraram ao ouvir do pai quanto ambos o deixavam orgulhoso por tudo o que alcançaram. Havia, contudo, algo diferente no ar. O leitor em torno do qual todos se reuniram e por quem derrubaram lágrimas não está mais entre nós desde 13 de janeiro de 2022, quando morreu, aos 62 anos, em decorrência de complicações cardíacas.

Salvador não havia deixado uma gravação da leitura antes de morrer. Na verdade, ele nem sequer tinha escrito a carta. Sua voz foi recriada com a ajuda de inteligência artificial (IA) para ler as palavras escritas por seu filho mais novo. “Quando ele morreu, eu ficava escutando áudios”, diz Wagner. “Era uma forma de lidar com a saudade. Até que comecei a procurar aplicativos que pudessem reproduzir textos com a voz dele.” O caçula não achou o que queria, mas encontrou o Mr. Falante, projeto liderado pelo professor Frederico Santos de Oliveira, na Universidade Federal de Goiás, que visava a pesquisar, desenvolver e treinar modelos para processamento da fala. Com doze áudios de Whats­App, foi possível recriar o tom e a cadência da voz de Salvador.

Aplicativos como o que Wagner buscava começam a fazer sucesso, cada vez mais procurados. Eles compõem um novíssimo e promissor segmento batizado de “tech do luto”. Há infinitas e criativas possibilidades. No HereAfter, os usuários podem gravar memórias em áudio — o que requer algum desprendimento, sabendo-se que serão compartilhadas após a morte. Os registros são depois carregados em um programa capaz de montar um robô de IA, uma espécie de sósia virtual afeito a contar histórias. Eis a oferta, de acordo com o site da empresa: “preservar memórias significativas sobre sua vida e compartilhá-las de forma interativa com as pessoas que você ama”. O StoryFile dá um outro passo, ao autorizar conversas em vídeo com alguém que já morreu. O empreendimento ganhou as manchetes depois que a americana Marina Smith, uma avó de 87 anos, conseguiu “conversar com os convidados em seu funeral”. A companhia, com quarenta funcionários e uma receita anual de 10 milhões de dólares, oferece uma versão interativa de parentes falecidos. O modus operandi: uma sessão de perguntas e respostas de uma hora com o indivíduo antes de sua morte, por óbvio.

ÉTICA - Imagens e sons deixados em registros eletrônicos: até onde usá-los?
ÉTICA - Imagens e sons deixados em registros eletrônicos: até onde usá-los? (Ferrantraite/Getty Images)

No horizonte de recursos há a possibilidade de criação de avatares, em forma de hologramas, afeitos a dialogar. “A ideia é recorrente nos livros e filmes de ficção científica, e hoje em dia, com chatbots como o ChatGPT, é desafio tecnológico razoavelmente simples”, diz Fernando Osório, professor do Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação e pesquisador do Centro de Inteligência Artificial da Universidade de São Paulo.

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Há casos mais simples, porém na mesma estrada. A perda do pai inspirou Mario Cassio Mauricio a criar a startup brasileira Misyu. O aplicativo permite que o usuário faça uma cápsula do tempo, com mensagens que podem ser entregues depois da morte, em datas previamente agendadas. Além disso, é possível deixar registradas as orientações para o funeral e organizar o planejamento sucessório com o detalhamento de apólices de seguro de vida e cópias do testamento. A empresa não tem como objetivo a criação de clones digitais feitos por IA, mas serve como repositório para que o usuário possa legar algo para a família, muito além dos objetos materiais. “Ainda há muito espaço para que gente possa ser gente, sem a necessidade de uma criação virtual”, defende Mauricio.

Parece não haver dúvida: são serviços reconfortantes e de evidente utilidade, um modo extraordinário de apaziguar os ânimos entristecidos. Atraem curiosidade e interesse por oferecer, em termos, a eternidade. Há, contudo, evidentes barreiras que precisam ser vencidas. Em primeiro lugar, sublinhe-se que lidar com o luto é tabu imenso, e tê-lo atrelado a novíssimas tecnologias, ainda mais. Convém também iluminar as questões éticas, que pululam, como se houvesse algum tipo de comércio com a dor e a saudade. “Quem morreu não tem como rebater o mau uso de sua imagem, comportamentos, conhecimentos e memórias”, diz o professor Osório, da USP. Ele tem razão, mas os recursos de ponta, acelerados e exponenciais, indicam a expansão do luto digital, em movimento irrefreável. Vale lembrar o perspicaz comentário do sociólogo alemão Norbert Elias (1897-1990): “A morte é um problema dos vivos”. É uma verdade inegável, e ela não tem nada de artificial.

Publicado em VEJA de 15 de dezembro de 2023, edição nº 2872

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