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Eu entrevistei o CEO da Apple. O outro

Em 1991, quando de bloco e caneta nas mãos sentei-me diante do CEO da Apple, o dono do posto era justamente um antípoda de Jobs, John Sculley

Por Eurípedes Alcântara
16 out 2011, 09h13
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  • Quando chegar o dia de o sol se apagar para John Sculley… Nas primeiras linhas do obituário virá a informação que ele armou a saída de Jobs da Apple em 1985

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    Preparei-me como poucos para o que poderia ter sido a mais extraordinária entrevista da minha carreira de editor de Tecnologia de VEJA: Steve Jobs. Mas quis o destino que, no começo de 1991, quando de bloco e caneta nas mãos sentei-me diante do CEO da Apple, em Cupertino, na Califórnia, o dono do posto fosse justamente um antípoda de Jobs, John Sculley. Harry Truman demitiu o general Douglas MacArthur nos anos 50. A Ford demitiu Lee Iacocca nos 70. A queda dos dois heróis americanos foi chocante. MacArthur e Iacocca, porém, tinham mesmo que cair. O general queria jogar bombas atômicas na China com o objetivo de interromper o apoio de Mao à Coréia do Norte. Iacocca foi derrubado pela soberba. Confrontado com o fato que os tanques de gasolina dos modelos Ford Pinto tendiam a explodir quando alvos de colisão na traseira, Iacocca escudou-se na arrogante e suicida resposta à crise: “Segurança não vende carro.” Sculley conseguiu que a Apple demitisse seu fundador, forçando a renúncia de Jobs, no que foi um choque nos anos 80. MacArthur voltaria fugazmente à cena na despedida na academia militar (“Um velho soldado nunca morre, desvanece simplesmente”). Iacocca, criador do Mustang, mais tarde se reinventaria como lenda na Chrysler. Jobs voltou à Apple em 1997, mudou o mundo digital e foi enterrado como um rei.

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    Quando chegar o dia de o sol se apagar para John Sculley… Nas primeiras linhas do obituário virá a informação que ele foi o executivo que armou o afastamento de Jobs da Apple em 1985. Antes, Sculley fez longa e exitosa carreira até o topo na PepsiCo, tendo trabalhado no Brasil quando a empresa americana comprou a brasileira Elma Chips. Foi minha pergunta de aquecimento. “De que lhe serviu a experiência brasileira?” Sculley, que não perderia para garçons parisienses um campeonato de frieza, desconversou. Ele não se lembrava mais de nenhuma palavra em português. Mas não se esquecera da “mão-de-obra barata” ( 2,6 dólares por dia, metade do que a PepsiCo pagava por hora a um peão nos Estados Unidos) e de como teve que dar um “choque sanitário” nos processos industriais da subsidiária brasileira. Na sua autobiografia “Odisseia, da Pepsi à Apple”, publicada em português em 1988, ele se refere ao Brasil como “um país falido”. Sculley relata despreocupadamente como seus executivos desmontavam máquinas industriais obsoletas nos Estados Unidos e contrabandeavam as peças para o Brasil em suas malas de viagem. As máquinas eram remontadas aqui e colocadas para funcionar sem pagar um centavo de imposto. John Sculley se orgulhava de ter sido o primeiro executivo com MBA contratado pela PepsiCo. Ele fez carreira como cortador de custos. A Elma Chips e, depois, toda a divisão de alimentos da PepsiCo tornaram-se lucrativas. A reputação de “empunhar uma machadinha” — e demitir pessoas “uma a uma, olhando-as nos olhos e explicando objetivamente o motivo maior da perda do emprego” – o levou a uma Apple em dolorosa crise de crescimento. A empresa estava sendo administrada por um criador original, Steve Jobs, cercado por uma estrutura sem proteína ou vigor de gestão para acompanhar seus surtos de inventividade. A Apple ia quebrar. Equiparados no comando, Jobs e Sculley conviveram bem alguns meses. Logo se evidenciou a incompatibilidade total entre o intrépido desbravador do universo microdigital e o vendedor de refrigerantes que não olhava despesa quando a missão era cortar custos.

    Dado o duelo final entre os dois, o conselho da Apple ficou com aquele que garantiria a sobrevivência imediata da empresa. Jobs saiu com 150 milhões de dólares. Foi sofrer um pouco e se preparar para as revoluções que faria no cenário tecnológico quando voltasse à Apple em 1997. Sculley enxugou a Apple, aumentou o preço dos computadores Macintosh, lançou produtos esquecíveis. E um inesquecível. Foi o Newton MessagePad, um tablete que deveria ser um “assistente digital”. A maior inovação do aparelho, lançado em 1993, era a capacidade de transformar letra cursiva em texto formatado em dezenas de fontes diferentes. Sculley comprou bem baratinho essa tecnologia desenvolvida por programadores da recém-arruinada União Soviética. Seu mecanismo de reconhecimento de caligrafia era patético. As mancadas da maquininha criaram uma modalidade nova de humor baseada nas suas confusões. A pessoa escrevia, por exemplo, quinta-feira – “thursday”, em inglês, e o Newton entendia sedento – “thirsty”. A Apple anunciou que seu MessagePad era capaz de se comunicar com outros MessagePads, o que integraria seus usuários em uma versão rudimentar de rede. Sim, o Newton podia se comunicar com outros Newtons, mas o fazia através de emissores-sensores de radiação infravermelha, tipo de conexão que só funciona bem entre dois aparelhos de cada vez e exige que estejam a menos de trinta centímetros de distância. A Apple ainda chegou a lançar um opcional que dava ao Newton a possibilidade de conectar-se sem fio a distâncias um pouco maiores. Tarde demais, caro demais, complicado demais – a perfeita negação de Steve Jobs. O Newton naufragou, levando com ele seu criador. O que faltou a John Sculley? Com o sol de Jobs no firmamento nenhuma estrela brilharia — muito menos a de Sculley. Mas a ele faltou principalmente a internet. Ele foi atraído para a Apple pelo próprio Jobs que lhe teria dito a frase lendária, embora nunca confirmada por nenhum dos dois: “Você quer passar a vida inteira vendendo água com açúcar ou prefere ter a chance de mudar o mundo?” Ele ficou dez anos no comando da empresa em Cupertino. Saiu em 1993 sem mudar o mundo. Mas pode ter sido por pouco. Naquele mesmo ano a Apple lançou um serviço chamado eWorld, que permitia aos computadores da marca participar de uma rede fechada a que eles se conectavam pelo telefone com a intermediação de um modem, o “modulador-demodulador”, a Pedra de Rosetta que permitiu o diálogo de aparelhos digitais através dos circuitos analógicos das companhias telefônicas. Logo o eWorld teria uma “gateway”, uma porta de comunicação, com a internet, a rede que desencadearia a mais formidável corrida de modernização tecnológica mundial já experimentada na história. Especulemos sobre como John Sculley reagiria ao mundo em transformação pela internet, caso o implacável Cronos tivesse permitido que seu período mais produtivo se materializasse com cinco anos de atraso no Infinity Loop. A primeira e mais óbvia conclusão é a de que a história do Newton teria sido não a de um retumbante fracasso, mas a de um produto saído da cabeça de um visionário. Beneficiado pela popularização e barateamento das tecnologias de conexão de meados dos anos 90, o Newton poderia vir a ser classificado como antepassado direto do iPad e teria catapultado a carreira de John Sculley. Ele atingiria a categoria de lenda de seu antecessor e sucessor? Provavelmente não, pois nada indica que Sculley teria tido as mesmas certeiras intuições que serviram magicamente a Steve Jobs na extensão de seu domínio sobre o reino digital com a incorporação da indústria musical, do cinema de animação e da telefonia móvel. Certamente Sculley não teria atingido o patamar de herói cultural da humanidade a que Jobs foi elevado na morte. Naquele longínquo e tecnologicamente pré-histórico 1991 eu perguntei a Sculley como ele enxergava o futuro da Apple. Ele respondeu: “Meu objetivo é fazer da Apple uma empresa de software, uma usina de ideias e soluções brilhantes para os problemas do cotidiano das pessoas.” Sculley teve seu momento Jobs. Quanto a mim, que no decorrer dos anos 90 falaria até mais de uma vez com Bill Gates, Scott McNealy, Tim Berners-Lee, Michael Dell, Gordon Moore, Marc Andreessen, Larry Ellison e tantos outros fundadores da civilização digital, entrevistei o executivo chefe da Apple. O outro. *Eurípedes Alcântara é diretor de redação de VEJA

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