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As mudanças nas relações humanas por causa da pandemia de coronavírus

Graças a apps de videoconferência, o distanciamento social imposto pela quarentena está sendo minimizado

Por André Lopes Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO , Sabrina Brito Atualizado em 27 mar 2020, 09h53 - Publicado em 27 mar 2020, 06h00

Surtos epidêmicos estão na própria origem da palavra quarentena. As indicações históricas são de que o termo surgiu na Euro­pa do século XIV, em meio à eclosão da chamada peste negra. Uma cidade portuária governada por Veneza decretou que navios provenientes de regiões afetadas pela doença não atracassem, inicialmente, por um período de trinta dias (trentino). Mais tarde, a proibição se estenderia para quarenta dias — quarantino, que deriva do italiano quaranta (quarenta), matriz do termo em diferentes idiomas. Não é de estranhar, portanto, que a expressão “quarentena”, em uma conotação menos rígida quanto à duração do isolamento, tenha se transformado, nos quatro cantos do planeta, numa espécie de mantra nestes tempos de novo coronavírus.

Por aqui, é verdade, o presidente Jair Bolsonaro estranha a atitude — a ponto de, na terça-feira 24, em um discurso à nação, haver pedido o fim do distanciamento social nas cidades do país. Mas a orientação dos profissionais de saúde de todo o globo é uma só: não saia. A exemplo do que tem ocorrido no exterior, a população brasileira está atendendo ao apelo. No domingo 22, antes mesmo de estar valendo a determinação do governador João Doria nesse sentido, 87% dos habitantes da capital paulista não saíram de seu bairro, segundo dados da startup In Loco, de serviços de geolocalização. Em todos os estados do país, ao menos 35% de seus moradores estão respeitando a ideia de quarentena. No caso dos idosos, que lideram o grupo de risco, a tendência ao recolhimento é evidente — salvo necessidades mais imediatas, como vacinar-se contra a gripe. Para um número formidável de cidadãos, a casa virou o mundo.

Se isso não pôde ainda frear o avanço da Covid-19, já é notável seu impacto em outro aspecto: o das relações sociais. A começar pelo fato de que, apesar da distância física que o confinamento entre quatro paredes impõe, as pessoas continuam próximas daqueles que estimam e amam, mas com os quais não dividem o mesmo teto. O prodígio, é desnecessário sublinhar, decorre das extraordinárias conquistas da era digital. Desde o início das restrições de circulação, ferramentas de videoconferência saltaram para as primeiras colocações nas lojas de aplicativos, tornando viáveis os encontros com parentes, a happy hour entre amigos, as brincadeiras antes só experimentadas presencialmente.

O estudante de engenharia Juan Gongra, de 22 anos, mora em Cuiabá, em Mato Grosso, enquanto a família vive na cidade de Campinas, em São Paulo. Impedido de voltar para casa devido à quarentena, ele começou a encontrar-se com seus familiares nos fins de semana, após o almoço, por meio do aplicativo Zoom, que permite reunir até 1 000 pessoas na mesma chamada. “São momentos diferentes de quando eu ligava apenas para saber se estava tudo bem. Estamos nos atualizando mutuamente e até fazendo atividades em conjunto, como apreciar os desenhos do meu sobrinho, de 5 anos.” A lojista brasiliense Débora Moura conta que, apesar de nunca ter sido fã de videoconferências, passou a enxergá-las como uma saída de emergência para o tédio — sobretudo nos fins de semana. “Aos sábados e domingos bate aquela necessidade de socializar com os amigos. É preciso estar presente na ausência”, pondera. Ela, que tem 28 anos, usa o app Houseparty, que tem a capacidade de juntar oito pessoas ao mesmo tempo, para se divertir remotamente com os amigos — e jogar Imagem e Ação (brincadeira que envolve mímica).

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Com um número maior de usuários na internet — em março houve um aumento de 40% no tempo de conexão via dispositivos fixos —, o tráfego de dados no Brasil bateu recordes e também nas nações mais afetadas pela doença, levando empresas como Netflix e YouTube a reduzir a qualidade de imagem em seus vídeos. A Anatel chegou a recomendar aos provedores que ampliem a capacidade de trânsito de dados disponibilizada para o público.

SAÍDA DE EMERGÊNCIA – Idoso toma vacina contra a gripe no Rio, na terça-feira 24, sem deixar o carro: grupo de risco (Mauro Pimentel/AFP)

Para além do universo virtual, no mundo real o relacionamento entre pais, filhos e eventualmente outros parentes que vivam juntos tem também passado por transformações. Com a escola e o escritório transportados para o território doméstico — como apontam as reportagens das páginas 80 e 84 —, o cotidiano de muitas famílias virou de cabeça para baixo. E o amor, nos tempos do coronavírus, registra, igualmente, mudanças significativas. “Durante a pandemia, todos terão a saúde afetada de um jeito ou de outro. No entanto, os relacionamentos conjugais são os mais suscetíveis nessa hora”, alerta a terapeuta de casais americana Melissa Thoen, do prestigioso Ackerman Institute for the Family, fundado em Nova York em 1960. “Saudáveis ou não, pessoas que ficam confinadas com seus parceiros começam a ver lados do outro que não conheciam”, observa. “Fora isso, há a pressão adicional para os que têm crianças”, completa ela.

Não se pode deixar de pontuar ainda que a Covid-19 assombra a Terra em um momento no qual o número de indivíduos que vivem sozinhos é o maior de toda a história. Trata-se de uma tendência que cresce desde o início do século XX entre os países industrializados, com acentuada aceleração nas décadas de 50 e 60. No caso brasileiro, o último levantamento feito pelo IBGE, entre 2005 e 2015, revelou um aumento de 10,4% para 14,6% na parcela de cidadãos que vivem sós. “Somos todos pinturas de Edward Hopper agora”, dizia um post que viralizou em março no Twitter ilustrado por quadros do artista americano (1882-1967), famoso por suas figuras solitárias — em um amargo paralelo com o momento de distância social imposto pelo novo coronavírus. Entre as obras destacadas nos compartilhamentos estava a belíssima Sol da Manhã (1952), que mostra uma mulher sentada em uma cama olhando para a janela (a modelo foi inspirada na esposa do pintor, Josephine Nivision).

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IMPRUDÊNCIA –  Londres no domingo 22, Dia das Mães por lá: a população lotou as ruas e o governo decretou confinamento (DANIEL LEAL-OLIVAS/AFP)

Estudos recentes atestam que um estilo de vida no qual a pessoa se encontre mais vezes isolada faz crescer a ansiedade e cobra um pesado pedágio físico, inclusive no âmbito dos circuitos cerebrais. Se tal condição se prolonga, pode até haver crescimento nas taxas de mortalidade. Em 2015, Julianne Holt-Lunstad, neurocientista e psicóloga que atua na Universidade Brigham Young, publicou uma análise de setenta pesquisas, envolvendo 3,4 milhões de cidadãos, sobre os impactos da vida sem interação social. Ela constatou que a solidão aumentou em 26% a taxa de mortes precoces.

Na contramão dos habitantes de outras grandes cidades, os londrinos resistiram até há pouco a conceber a sinonímia entre epidemia e quarentena. No fim de semana de 21 e 22 de março, eles lotaram ruas, metrôs e parques. O governo britânico reagiu, chamou de “muito egoístas” aqueles que não acataram a recomendação anterior de recolhimento e decretou quarentena de três semanas. O exílio residencial, contudo — e não só o dos moradores de Londres —, poderá ser uma lição e tanto para guardar quando a Covid-19 houver passado: a humanidade começa no encontro de um com o outro. É o que faz da casa o mundo.

Publicado em VEJA de 1 de abril de 2020, edição nº 2680

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