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A hora h da geração do iphone

Os jovens que cresceram com o aparelhinho nas mãos — e não têm ideia do que seja um mundo sem internet — começam a chegar à fase adulta. Estarão prontos?

Por Filipe Vilicic Atualizado em 18 jan 2019, 07h01 - Publicado em 18 jan 2019, 07h00

“Caras, vocês sabem sobre o que é esta música? É sobre aliens. Nós somos os aliens, cara. Nós somos os selvagens.” Assim um dos personagens de Jovens, Loucos e Rebeldes (1993) — já considerado um pequeno clássico do cinema, que alçou à fama o diretor Richard Linklater, além de atores como Matthew McConaughey e Ben Affleck — resume a sensação do que é ser adolescente. O rompante, que tem lugar no meio de uma festa de despedida do ensino médio em plena década de 70, se dá enquanto uma hippie (Milla Jovovich) canta uma composição própria, a Alien Song.

Durante muito tempo, produtos culturais como o filme de Linklater retrataram os jovens como “loucos” e “rebeldes”. No roteiro, estudantes provam maconha, embebedam-se e um dos protagonistas, promissor jogador de futebol americano, recusa-se, por convicções morais, a assinar um documento no qual se comprometeria a nunca mais festejar nada, para assim garantir a carreira no esporte. Outros longas-metragens, como Loucuras de Verão (1973), de George Lucas (o mesmo da franquia Star Wars), ou Curtindo a Vida Adoidado (1986), de John Hughes, ecoaram esse persistente perfil da juventude. Em busca da independência e — vá lá — do amadurecimento, os adolescentes se atiravam e se desafiavam o tempo todo, em todas as frentes, mundo afora.

Sim, eles “se atiravam” e “se desafiavam”. Os verbos não estão no passado por acaso. Nos últimos quinze anos, os jovens, esses que não fazem ideia de como era o mundo pré-internet, deixaram de ser “loucos” e “rebeldes”, pelo menos à moda antiga, como foram os nascidos depois da II Guerra Mundial e que viveram a adolescência nas décadas de 60 e 70. Quem sustenta essa visão é a psicóloga americana Jean Twenge em um livro com um longo título — iGen: por que as Crianças Superconectadas de Hoje Estão Crescendo Menos Rebeldes, Mais Tolerantes, Menos Felizes e Completamente Despreparadas para a Idade Adulta — recentemente lançado no Brasil e que ganhou fama sobretudo após ter um resumo publicado pela autora na revista The Atlantic, editada nos EUA.

(Antonio Milena/.)

A FAMÍLIA EM SEGUNDO PLANO 
“É muito difícil tirar a atenção do meu filho do tablet. Ele só quer saber de jogar on-line. O contato mais próximo que tive com meu filho em anos foi quando houve um apagão, ficamos sem wi-fi e, assim, fomos brincar juntos.”
Leandro Dolfini, publicitário paulistano, de 41 anos, pai de Cauã Dolfini, de 11 anos


Jean Twenge define os integrantes dessa onda jovem: “São os nascidos a partir de 1995, que cresceram com celulares, abriram conta no Instagram antes de entrar no ensino médio e não se lembram de nada antes da internet”. Professora de psicologia e pesquisadora da Universidade Estadual de San Diego, ela se especializou no estudo da mente da juventude. Antes de iGen, já havia publicado, em 2006, Generation Me (Geração Eu), acerca dos millennials, assim chamados os que vieram ao mundo entre 1982 e 1995. Em sua nova obra, a autora se baseia em estatísticas levantadas desde os anos 1970, compilando estudos feitos com um total de 11 milhões de crianças e adolescentes, majoritariamente americanos, para realizar um raio-X daqueles que hoje têm entre 7 e 23 anos de idade — incluindo, portanto, quem começa a ingressar na vida adulta. Indivíduos que, enfatiza a autora, “possuem experiências diárias radicalmente diferentes das de todos aqueles que os precederam” e, por isso, “amadurecem mais devagar, agindo aos 18 anos como se fossem jovens de 15 do passado e aos 13 como se tivessem 10”.

De acordo com os dados apresentados pela psicóloga, um adolescente atual com 18 anos sai menos de casa sem os pais do que um de 14 anos da época dos millennials. A média de vezes em que se diverte apenas com amigos, sem a supervisão de adultos, caiu para quase a metade. Rapazes e moças também têm menor anseio de buscar independência financeira. Enquanto somente 22% dos jovens não trabalhavam em 1970, hoje 44% jamais ganharam dinheiro algum por empenho próprio. Seria possível argumentar que eles dedicam mais tempo aos estudos, mas tal justificativa não se sustenta. Isso porque um menino ou uma menina de 15 anos hoje gasta em torno de dez minutos diários a menos com as tarefas escolares em comparação com os de gerações anteriores.

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(Humberto Michaltchuk/Prata Gelatina/.)

O VÍCIO EM REDES SOCIAIS 
“Já passei mais de uma hora para selecionar uma única foto que publicaria no Instagram. Até minha mãe já me avisou que vivo demais em função desse app.”
Eduarda Leone, advogada e maquiadora curitibana, de 22 anos


“Ao experimentarem menos a sensação de sair sozinhos, eles também experimentam menos o gosto da independência que depois vão encarar como adultos, de tomar as próprias decisões, sejam elas ruins ou boas”, analisa a pesquisadora. No entanto, se os jovens têm festejado pouco e também não se dedicam com afinco às lições de casa, adivinhe com que eles vêm gastando tempo. Claro: com celulares, redes sociais, WhatsApp, web, videogame e outras tecnologias contemporâneas. Geralmente, em países desenvolvidos, como os Estados Unidos, oito em cada dez têm um smart­pho­ne. Um típico filho da Geração I — chamada pela autora de iGen justamente por seus integrantes já haverem crescido com celular próprio (o iPhone foi lançado em 2007) e viverem conectados a Facebook, Instagram e cia. — consulta cerca de oitenta vezes por dia esse tipo de aparelho. Ao todo, ele passa cerca de quatro horas diárias vidrado nele. Se forem contados o período na escola, o de sono e ainda o focado em outras tecnologias, como computadores, tablets e videogames, praticamente não lhe sobrará tempo algum para atividades como interações off-line com os amigos.

Há, porém, efeitos positivos. Os adolescentes da atualidade estão mais seguros fisicamente, sendo menos expostos a acidentes de carro ou a brigas na rua. Do mesmo modo, apresentam menor tendência a cometer atos que possam ser negativos — por exemplo, apenas 2% das americanas entre 15 e 19 anos já têm um bebê; há menos de duas décadas, esse índice era de 6%. Segundo apontam os estudos compilados em iGen (leia o quadro abaixo), a maior frequência de relacionamentos, via web, com indivíduos de gênero, etnia e cultura distintos também atesta um pensamento mais tolerante e inclusivo por parte da juventude.

A nova geração é particularmente aberta — a despeito de suas crenças religiosas — ao casamento gay. Entre os millennials, a aceitação era de sete em cada dez, proporção que diminui conforme se regressa nas gerações, até o mínimo de quatro em dez entre os nascidos no pós-guerra — aliás, nesse grupo, apenas uma minoria (30%) não considerava a homos­se­xua­lidade pecado. Em sua maioria, os jovens dos tempos modernos tampouco veem problema em ter professores assumidamente gays ou mesmo em se abrir, eles mesmos, a experiências sexuais diversas. O número de garotos que declaram ter tido ao menos um caso com outro menino dobrou desde os anos 1990, enquanto o de meninas triplicou. Vale destacar que a maior parte deles se declara, mesmo assim, heterossexual.

Essa postura estende-se a outros aspectos. Por exemplo, 80% dos adolescentes dizem manter contato frequente com representantes de outras etnias. A mudança foi expressiva ainda em relação ao feminismo: em torno de 75% não veem problema no fato de sua mãe trabalhar; em 1976, cerca de metade era contra. Ao mesmo tempo, reduziu-se o contato físico com outras pessoas, o que deixou os jovens mais inábeis para as relações sociais. Enquanto na escola o bullying é combatido, extravasa-se na internet: 22% das garotas e 10% dos meninos já sofreram agressões virtuais do tipo.

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Em consequência de todo esse cenário, novos males passaram a afligir os jovens. Aumentou, por exemplo, o número dos que dizem sentir-se solitários e depressivos. Entre 2000 e 2015, a quantidade de suicídios na faixa dos 10 aos 14 anos saltou 65%. Entre os adolescentes de 15 a 19 anos, o crescimento também foi alarmante: 45%. Agora, pela primeira vez na história, um jovem chega a correr um risco em média 40% maior de tirar a própria vida, em comparação com um adulto. A massa de dados refere-se aos adolescentes americanos. Todavia, devido à influência da cultura dos EUA no Brasil, as complicações citadas não são muitos diferentes das daqui.

“Prefiro estar no meu celular, em meu quarto, assistindo à Netflix, a ficar com minha família. Fiz isso ao longo da maior parte de minhas últimas férias. Fico mais ao celular do que com pessoas reais.” O relato concedido à autora de iGen por uma menina texana de 13 anos não retrata uma exceção, e sim a regra entre jovens. Um cenário que, em um mundo globalizado, se replica ao redor do planeta. “São mudanças geracionais que estão emergindo também em quase todas as culturas”, escreve Jean Twenge. No Brasil, 75% dos adolescentes têm smartphone, sendo que, de acordo com pesquisa do Instituto Delete, do Rio de Janeiro, 30% dos pertencentes à Geração I consideram-se dependentes desse dispositivo. Em média, um jovem brasileiro dedica três horas e catorze minutos de seu dia somente às redes sociais. As consequências dessas atitudes são as mesmas contextualizadas no livro iGen.

Aos 22 anos, nascida em 1996, a advogada e maquiadora curitibana Eduarda Leo­ne está entre aqueles primeiros representantes da Geração I. Ela declara que já se viu dedicando horas e mais horas apenas a clicar, tratar com filtros e publicar uma única foto no Instagram. Amigos e familiares a alertaram para o que a própria Eduarda considera ser um vício. “Esse comportamento claramente atrapalha minha vida”, admite ela. Já a estudante paulista Ana Zaneti, de 16 anos, que mora em Santo André e estuda em um colégio particular em São Paulo, diz sentir-se muitas vezes triste e deprimida enquanto acessa as redes sociais. “Quando rolo a timeline, vejo milhões de imagens com corpos perfeitos, colegas exibindo ótima vida, gente viajando”, conta ela. “Isso acaba me absor­vendo e me levando a me sentir de uma forma que não gostaria, com vergonha de minha rotina banal.” Mesmo assim, a estudante não consegue largar tais sites e aplicativos. Afinal, são esses os meios pelos quais ela mais se comunica com os amigos e familiares.

A sensação relatada por Ana é compartilhada por seus colegas de escola. Não só por eles, mas também por uma assustadora parcela da juventude da Geração I. Estudos indicam que aqueles que passam horas conectados à web — ou seja, a maioria — têm maior risco de manifestar sintomas de depressão. Por exemplo, os que estão com aproximadamente 14 anos e passam acima de dez horas semanais em redes sociais apresentam uma tendência 56% maior de exibir tal problema. Mesmo os que gastam um pouco menos de tempo com Facebook, Instagram e Twitter — entre seis e nove horas por semana — ainda são 47% mais suscetíveis àqueles sintomas. Em oposição, os raros adolescentes que ainda dedicam mais de seus dias ao relacionamento tête-à-­tête com amigos costumam afirmar, em frequência 20% maior, que são felizes. Ou seja, o abuso dos aparelhos eletrônicos não só leva ao vício comportamental como deixa seus usuários melancólicos.

No Brasil, 75% dos adolescentes têm smartphone. Além disso, segundo o Instituto Delete, 30% deles consideram-se dependentes desse dispositivo

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Disse a VEJA o psicoterapeuta americano Tom Kersting, autor de Disconnected: How to Reconnect Our Digitally Distracted Kids (Desconectadas: como Reconectar Nossas Crianças Digitalmente Distraídas): “A tecnologia impactou o significado de ser um humano. Ela está nos desumanizando ao nos levar a ficar encarando telas. Isso faz a indústria da tecnologia ser igual à do cigarro. A boa notícia é que, como houve redução no fumo nas décadas que passaram, aposto que existirá uma maior conscientização em relação ao abuso de aplicativos, celulares e afins”. Tomara. Entre os adolescentes que ultrapassam as três horas diárias (sim, a maioria) em dispositivos eletrônicos, de videogames a smart­phones, há risco 35% maior de ter pensamentos suicidas. Por outro lado, pesquisas compiladas em iGen indicam que jovens que trocam as horas nesses dispositivos pela dedicação aos esportes, aos estudos ou a serviços comunitários apresentam metade do risco de sen­tir-se deprimidos.

Para Kersting, a melhor forma de reverter esse cenário é a conscientização dos pais. “Eles têm de reivindicar o papel de serem os maiores modelos para seus filhos”, ensina. “Ocorre, entretanto, que os pais também estão se viciando nas tecnologias, num movimento que vem transformando a família do século XXI em um conjunto de pessoas que mal se comunicam, não se compreendem, tecem relações imaturas e, no fim, acabam só compartilhando um mesmo teto.”

O publicitário paulistano Leandro Dolfini, de 41 anos, sentiu esse problema na pele. Ele afirma que pouco se relacionava em casa com seu filho, Cauã, de 11 anos. Foi apenas quando houve uma falta de luz prolongada em seu apartamento que ele notou a situação. “Fomos quase que obrigados a passar todo o tempo falando um com o outro”, recorda Dolfini, que, ironicamente, escreveu depois esse relato no Facebook, num post que viralizou na web. “Desde então, resolvi controlar mais o tempo que passamos ao celular”, afirma.

Um dos grandes perigos disso tudo é o risco de a internet estar forjando uma geração de jovens mais seguros e com a cabeça mais aberta mas para sempre imaturos, extremamente interessados em games e apps. Ou seja, alheios às incumbências típicas da vida adulta. Opina Kersting: “É uma juventude que não quer saber de trabalhar, que começa a sair agora das faculdades sem preparo para isso e que nem sabe como se portar em uma entrevista de emprego. São recém-formados que parecem conchas vazias, que ficam até 2 da madrugada no Instagram, dormem pouco e até acordam cedo — mas para verificar de novo o Instagram”.

(Antonio Milena/.)

A BUSCA POR LIKES
“Às vezes eu me pego triste apenas por perceber que não recebi muitas curtidas numa foto que publiquei. Por isso comecei a me controlar mais, a postar menos nas redes sociais.”
Ana Zaneti, estudante paulista, de Santo André, de 16 anos 

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SÓ PELO ZAP
“Fora da escola, a maior parte das conversas que tenho com meus amigos se dá pelo WhatsApp e por outros aplicativos. É um tanto raro vê-los pessoalmente.”
Marcelo Marchetto, estudante paulistano, de 14 anos


As conclusões do psicoterapeuta são respaldadas por números. No que se refere à falta de interesse pela independência financeira, são muitas as evidências. Por exemplo, há o fato de que, pela primeira vez na história, menos da metade (43%) dos jovens americanos tenta procurar algum tipo de rendimento próprio ao longo das férias escolares. Além disso, em comparação com os anos 1980, dobrou o número daqueles que nem cogitam trabalhar logo. Já em relação à falta de sono, houve um aumento de 57% no número de jovens americanos que dormem sete ou menos horas por dia, ou seja, abaixo do recomendado, em comparação com a juventude da década de 90. Esse índice teve um salto de 22% entre os anos de 2012 e 2015, precisamente no período em que a maioria das crianças e pré-adolescentes passou a ter um celular. A associação não é fortuita: aqueles que acessam redes sociais ao menos uma vez por dia correm um risco 20% maior de sofrer distúrbios relacionados à falta de sono.

Se Jovens, Loucos e Rebeldes retratava com perfeição a juventude até ao menos o surgimento do Facebook, em 2004, e do iPhone, em 2007, qual produto cultural poderia servir de espelho da Geração I? Há várias opções. Contudo, o destaque é a série 13 Reasons Why, lançada em 2017 pela Net­flix. Nela, colegiais, vidrados em seus celulares e perfis de Facebook e Instagram, apresentam uma série de problemas de relacionamento como os retratados nesta reportagem — aqui, vale dizer, fora da ficção. No fim da trama, o desfecho é extremamente trágico para os adolescentes. Na vida real, ninguém aposta em tragédias dessa magnitude, e espera-se, claro, que as coisas evoluam de modo favorável. Mas o certo é que, como escreveu Jean Twenge em sua obra — desde logo referência no assunto —, a Geração I já representa “mudanças positivas, outras negativas, e algumas que são ambas as coisas”.

Com reportagem de André Lopes e Jennifer Ann Thomas

(Arte/VEJA)

Publicado em VEJA de 23 de janeiro de 2019, edição nº 2618

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