Se hoje o mundo observa os chamativos e palatáveis pacotes de bolacha, macarrão instantâneo e lasanhas congeladas com o entendimento de que o consumo em excesso pode causar danos à saúde, pode ter certeza de que essa semente foi plantada pelo pesquisador brasileiro Carlos Monteiro.
Nos últimos 15 anos, desde que liderou o grupo que cunhou o termo “ultraprocessados” para esses produtos, Monteiro promoveu uma revolução nos estudos sobre o tema, tornando-se uma referência internacional, e estabeleceu um olhar que coloca a comida do futuro não como a mais prática, mas como aquela mais parecida com o alimento em sua forma natural, que expressa tradições, culturas, utiliza produtos locais e que traz uma peculiaridade que difere o ser humano de outros animais: saber cozinhar.
Recém-titulado como professor emérito da Universidade de São Paulo (USP), assinou recentemente editorial na renomada revista científica British Medical Journal (BMJ) sobre o estudo que avaliou dados de 10 milhões de pessoas e apontou ligação direta entre o consumo desse tipo de industrializado e o risco aumentado de 32 doenças, que vão de problemas cardiovasculares a câncer e transtornos mentais. Não poderia ter sido mais direto: “Alimentos ultraprocessados prejudicam a saúde e encurtam a vida”.
Em entrevista exclusiva a VEJA, o pesquisador contou como se deu a transição de seus estudos sobre desnutrição para a investigação sobre obesidade, os dez anos do Guia Alimentar para a População Brasileira, a amizade com a apresentadora Rita Lobo e sua opinião sobre os novos tratamentos contra obesidade, como Wegovy e Mounjaro. Leia os principais trechos.
A sua trajetória na pesquisa teve início com investigações sobre a desnutrição. Como ocorreu a transição para estudos sobre obesidade?
Desde o começo, nos anos 1990, a linha de pesquisa principal do Nupens (Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde) era o monitoramento das condições de nutrição e saúde da população brasileira. Passamos a apoiar inquéritos nacionais do Ministério da Saúde e do IBGE para identificar o estado nutricional e, nos nossos projetos, a gente identificou a queda da desnutrição. Em 1996, por exemplo, tínhamos 22% das pessoas desnutridas no Nordeste. Em 2006, eram 10%. Estudamos os fatores e houve aumento da escolaridade das meninas, que se refletiu na escolaridade das mães, redução da pobreza absoluta, melhora do saneamento. Nos anos 2000, começamos a ter o aumento da obesidade e monitorávamos a alimentação do brasileiro também pelo inquérito de compras. As pessoas estavam cada vez comprando menos óleo, açúcar, sal e menos arroz e feijão. A gente começou a olhar a cesta de alimentos das pessoas e viu que tinha uma substituição pela categoria de produtos prontos para consumo: bebidas açucaradas, refrigerantes, sucos e refrescos, biscoitos, embutidos, macarrão instantâneo, lasanhas, pão de forma. Embora fossem produtos diferentes, eram usados para substituir leite, verduras e frutas. Era uma explicação para o aumento da obesidade.
Como se deu o desenvolvimento da ideia de alimentos ultraprocessados? Criamos uma classificação nova para diferenciar do alimento processado, que é algo comum e que comemos há séculos, como pão e queijo. São coisas que, na realidade, compramos da indústria, mas podemos fazer em casa com farinha, água e fermento, no caso do pão. O ultraprocessado precisa de ingredientes industriais, equipamentos e técnicas que não podem ser reproduzidos em casa. São produtos que não conseguimos identificar a origem, porque o alimento é tão processado que não tem relação com o alimento original.
E de onde veio o nome ultraprocessado?
Foi uma criação coletiva. Quando publicamos a classificação pela primeira vez, em 2009, colegas de língua inglesa acharam a ideia interessante, mas disseram que precisávamos mudar o nome, porque “ultra” era algo bom. As pessoas entendem que o processamento é sempre bom, porque se ganha quando ele é simples, o leite pode ser transformado em queijo. Mas, na nossa teoria, nem sempre o processamento é o melhor. Talvez eu tenha ficado em dúvida quando as pessoas não gostaram, mas ultrapassou nossas expectativas. Se você buscar artigos científicos citando o termo, em 2009, havia o nosso. Agora, são 500 a 600 por ano em todo o mundo.
Por que eles são tão ruins para a saúde?
Os ultraprocessados têm substâncias estranhas para o corpo, afetando o pâncreas, os rins, o microbioma, porque tudo que ingerimos percorre todo o organismo. No fundo, o alimento é algo que vai até a última das nossas células. O consumo de ultraprocessados afeta todos os sistemas do nosso organismo e os estudos mostram que, invariavelmente, ele está associado não só à obesidade, mas a várias doenças crônicas, como diabetes tipo 2, derrames cerebrais e depressão. É difícil encontrar na história uma quantidade de estudos tão grande mostrando uma relação tão consistente. Estudos mostram que, em praticamente todos os países do mundo, a troca da alimentação tradicional pela ultraprocessada é muito grande, e este é um fator que causa doenças.
O Guia Alimentar para a População Brasileira está completando dez anos em 2024. Como fazer para que seus preceitos se incorporem na dieta da nossa população? Em outras palavras, como fazer o brasileiro retomar o arroz com feijão?
O Guia mostra que a alimentação saudável tem de ter cereais, frutas, verduras, legumes, ovos. Alguns países começaram a taxar os ultraprocessados, e o Brasil está discutindo a reforma tributária. Mas temos uma briga de Davi e Golias com a indústria, que tem potencial para se antecipar às políticas e para que não tenha guias, rotulagem, novos impostos. São corporações transnacionais e a receita dessas empresas é maior do que a de alguns países. Ninguém está falando em proibição, mas na maior regulação da categoria e em políticas que tornem o consumo cada vez menos interessante.
O senhor tem popularizado a discussão sobre alimentação saudável não só no Guia, mas também em trabalhos com a chef e apresentadora Rita Lobo, inclusive em livros dela. Como surgiu essa amizade?
O Ministério da Saúde encomendou o trabalho do Guia e, quando a gente chegou no terceiro capítulo, tínhamos de orientar as pessoas a adotar alimentos saudáveis na preparação culinária. Naquele momento, nunca tinha ouvido falar da Rita, mas várias pessoas do grupo falavam do programa dela. Tive acesso ao primeiro livro dela, Panelinha: Receitas que Funcionam, e colocamos como referência. Passou um tempo e o (escritor americano) Michael Pollan veio ao Brasil para a Flip, em Paraty, e o convidei para um almoço. Chamei a Rita e a gente começou um trabalho que não parou mais.
E como é sua relação com a cozinha?
Por causa do trabalho, não costumo ter muito tempo para cozinhar, mas posso dizer que o grupo todo que trabalhou no projeto, em 2009, já se alimentava de forma saudável e a valorização do cozinhar só passou a fazer sentido depois do estudo, porque a preparação de alimentos é muito nobre e importante para a humanidade. A gente passou a ter isso como um traço nosso: preparar a comida e descobrir como as pessoas e outras culturas resolvem determinados dilemas da preparação de alimentos.
Estamos acompanhando a profusão de novos tratamentos contra a obesidade, como o Wegovy e Mounjaro. Qual a sua opinião sobre essas alternativas?
O que originou essa pandemia de obesidade foi uma mudança radical na nossa alimentação causada pelo ultraprocessamento, que tem aditivos, compostos desconhecidos e desbalanceados em questão de nutrientes. Uma das questões do ultraprocessado é que ele é hiperpalatável e não sacia. Os medicamentos modernos trabalham nos hormônios de saciedade e fazem a pessoa perder o prazer de consumir o alimento. A gente sabe o que está acontecendo e o caminho natural seria parar, mas algumas pessoas acham que é impossível, que é parte da vida moderna e acham que têm de encontrar outra solução.