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O país dos ansiosos

O Brasil tem a maior incidência do mundo de pessoas que sofrem do transtorno. A boa notícia é que existem tratamentos bastante eficientes

Por Maria Clara Vieira e Bruna Motta | fotos Caio Guatelli
Atualizado em 28 dez 2018, 07h00 - Publicado em 28 dez 2018, 07h00

Analista de mídias sociais, o sul-mato-grossense Miguel Doldan, de 27 anos, lembra que tinha apenas 6 quando foi parar no hospital pela primeira vez, com dificuldade para respirar. O pediatra examinou-o, decretou que não havia nada errado e recomendou aos pais que lhe dessem pastilhas de hortelã como remédio, para que se sentisse aliviado. Em pouco tempo os sintomas retornaram, mas foi só no fim do ensino médio que as constantes crises o levaram a consultar um pneumologista. Dessa vez, o exame produziu um resultado curioso: os pulmões de Doldan estavam em perfeito estado, mas não usavam toda a capacidade. Era como se ele segurasse a respiração sem querer. “Cheguei a me convencer de que a sensação de aperto no peito era natural”, diz. Há seis anos, Doldan finalmente buscou ajuda psicológica e, pela primeira vez, teve um diagnóstico preciso: transtorno de ansiedade. Ele é um dos 18,6 milhões de brasileiros que sofrem da doença — sim, doença, e das mais prevalentes, tanto que foi classificada pela Organização Mundial da Saúde como o “mal do século XXI”.

O Brasil carrega o inglório título de campeão mundial do transtorno: segundo a OMS, quase 10% da população convive com a doença, bem acima do Paraguai, o segundo colocado, com 7,6%, e da Noruega, que aparece em terceiro, com 7,4%. No mundo todo, o diagnóstico se aplica a 264 milhões de pessoas. Os números brasileiros são tão alarmantes que os especialistas falam em uma epidemia. Um exemplo: o volume de internações de no máximo doze horas por problemas relacionados à saúde mental saltou de 32 000 para 77 000 em cinco anos, a ansiedade aí incluída. Outro: entre janeiro e setembro de 2018, o INSS concedeu 12% mais licenças para tratamento mental do que em 2017. Mais um: no Núcleo de Psicologia da Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro, a procura por tratamento de crise de ansiedade dobrou em um ano.

MIGUEL SANDER
25 anos, agente literário
Desde os 17, Miguel identificava sinais de uma ansiedade excessiva. Mas só no ano passado foi em busca de um médico, depois de uma profunda crise. Ele foi aprendendo a evitar situações com potencial de desencadear a sensação. Nem sempre consegue. “As redes sociais são uma porta de entrada para começar a sentir os sintomas, mas é duro ficar longe delas”, reconhece. (Caio Guatelli/.)

Faz sentido que se lance mão do pacote de doenças mentais como um todo para contabilizar o aumento acelerado dos pacientes com ansiedade, visto que a maioria dos problemas da mente tem alguma relação com os sintomas apresentados pelos ansiosos. Ansiedade e depressão são transtornos distintos, mas as pesquisas apontam forte correlação. “Em um grupo de cinco adultos depressivos, quatro foram jovens ansiosos que não receberam tratamento”, afirma Márcio Bernik, diretor do Ambulatório de Ansiedade da Universidade de São Paulo. A ansiedade está também na raiz de males como o pânico e o transtorno obsessivo­-compulsivo (TOC).

A palavra “ansiedade” tem origem no latim anxietas, que significa angústia. A primeira colocação do problema no âmbito dos males mentais foi feita por Sigmund Freud — antes dele, alterações na respiração, por exemplo, eram entendidas sempre como alguma falha nos pulmões. Em 1894, Freud associou essa e outras reações físicas ao que chamou de “neurose da angústia”. Levaria mais de setenta anos para que o psicólogo australiano Aubrey Lewis descrevesse na literatura médica o “estado emocional com um componente subjetivo de medo”, ao qual adicionou as qualificações de “desagradável, desconfortável e desproporcional”. Em 1980, a Associação Psiquiátrica Americana incluiu o transtorno de ansiedade em seu Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, a bíblia do setor, no qual está dito que os ansiosos experimentam um medo desproporcional ao antecipar uma situação futura que lhes parece arriscada ou incerta.

A ansiedade, em si, não é necessariamente vilã, levando-se em conta que o papel primordial de seu sintoma mais evidente, o medo, é uma forma de prevenir dor e sofrimento. “A agitação que sentimos na véspera do vestibular não passa de um estado natural de oscilação do cérebro saudável, que está se pondo em prontidão para enfrentar o desconhecido”, explica Diogo Lara, especialista em psiquiatria pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Confundir a ansiedade doentia com a natural ficou ainda mais comum — e complicado — depois que a angústia extrema ganhou status de transtorno passível de tratamento. “Ser ansioso tornou-se uma descrição curinga para dizer que a pessoa é perfeccionista, impaciente ou medrosa”, diz Lara.

O transtorno de ansiedade existe quando o indivíduo se prepara para reagir ao risco mesmo quando não há um risco claro — e essa reação se transforma em seu comportamento-padrão, e não eventual. “A preocupação vira o filtro através do qual a pessoa se relaciona com o mundo, dificultando sua adaptação às situações”, acrescenta Lara. Quando a ansiedade dificulta a vida normal da pessoa, levanta-se uma questão altamente polêmica no universo da medicina mental: quando é hora de receitar um ansiolítico, o medicamento por excelência para esses casos? “É impossível estabelecer um limite claro entre quem precisa e quem não precisa de remédio”, explica Bernik. “Cabe ao terapeuta avaliar se o sofrimento do paciente o torna incapaz de reagir por conta própria, em curto prazo, aos estímulos do medo que o oprime. Na prática, acaba havendo muita gente medicada sem necessidade”, diz.

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MIGUEL DOLDAN
27 anos, analista de mídias sociais
A falta de ar diante do desconhecido na infância evoluiu para medos adultos, como o de enfrentar novos ambientes. Ele chegou a abandonar empregos, até receber o diagnóstico — sim, sofre de ansiedade — e começar a se tratar. “Para cada tarefa simples, traço três, cinco planos para lidar com ela”, diz. Mas houve progressos. “Entendi que não dá para controlar tudo.” (Caio Guatelli/.)

Pesquisa mundial da IMS Health, empresa americana que fornece tecnologia e serviços a laboratórios, mostra que em 2016 a venda de antidepressivos e estabilizadores de humor cresceu 18,2% no Brasil e movimentou 3,4 bilhões de reais, valor inferior apenas ao dos popularíssimos analgésicos (que não precisam de receita). O carro-chefe da família dos benzodiazepínicos, que funcionam como um potente sedativo, é o Rivotril, que muita gente carrega na bolsa e ingere diante de qualquer contrariedade. “Trata-se de uma substância que desliga o sistema nervoso central, gerando uma sensação instantânea de relaxamento”, explica a psiquiatra Anny Mattos, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Sintetizados no início da década de 60, os compostos benzodiazepínicos revolucionaram a maneira de lidar com distúrbios psíquicos, até então tratados apenas com perigosos barbitúricos.

Uma geração de medicamentos pós-Rivotril, com menos efeitos colaterais, tem por base o diazepam, que aumenta a liberação de serotonina — o hormônio do bem-estar no cérebro. “Trata-se de um inibidor seletivo de estímulos. Seu papel principal é elevar a tolerância ao stress”, explica Bernik — que chama atenção, porém, para o risco do uso excessivo: “A pessoa pode virar o Senhor Spock (referência ao personagem sem sentimentos de Jornada nas Estrelas)”. O tempo do tratamento com medicamentos varia de nove meses a um ano, e espera-se que, no fim do processo, o paciente esteja livre dos sintomas mais graves. O agente literário Miguel Sander (leia seu relato e o de outros pacientes nas páginas desta reportagem), de 25 anos, está acabando o tratamento químico e se diz feliz com os resultados, mas relutou muito em seguir essa trilha. “Eu subestimava a necessidade de tomar remédio”, afirma. Ele está livre das crises constantes, mas sabe que cura, mesmo, não existe — até porque as causas da doença não foram identificadas.

A ansiedade tem vários subprodutos, e provavelmente o mais conhecido seja a síndrome do pânico, que atinge cerca de 6 milhões de brasileiros. Os sintomas físicos são semelhantes na manifestação, mas diferem na intensidade e na duração. No pânico, tudo é muito rápido e muito intenso. “A sensação é pontual, agudíssima, e dura no máximo dez minutos. O corpo se descontrola de tal modo que o paciente acha que vai morrer”, descreve o psiquiatra Lara. Frequentemente, quem sofre de pânico é um ansioso crônico. “É como se o estado natural do organismo já estivesse tão alterado pela ansiedade que, diante de qualquer imprevisto, o corpo entende que corre risco de vida”, explica o psicólogo Cristiano Nabuco. A professora Mariana Barrile, de 24 anos, de São Paulo, tem vivo na lembrança um ataque de pânico no metrô há três anos. “Comecei a chorar desesperadamente, a suar frio e a sentir muita falta de ar”, conta Mariana, que resolveu procurar ajuda psiquiátrica e passou a tomar remédios (atualmente a dose está reduzida a um quarto) para controlar os episódios.

MÔNICA BARBOSA
55 anos, professora aposentada
A ansiedade era o “estado natural” de Mônica, que nada fazia para refreá-la. Até que, aos 50, descobriu um câncer, foi ao médico e acabou relatando a sensação de permanente alerta que a acompanhava. Iniciou então um tratamento. Tomou ansiolítico durante um ano e meio, o que a fez sentir-se melhor. Encontrou ainda alívio na meditação. “São quinze minutos diários salvadores.” (Caio Guatelli/.)
(Arte/VEJA)

Outro distúrbio psicológico associado à ansiedade é a depressão, que atinge 11,5 milhões de brasileiros, de acordo com as últimas estatísticas. Sintomas como dificuldade de concentração, insegurança e irritabilidade são comuns aos dois distúrbios. Só que, enquanto os ansiosos sentem alegrias e tristezas extremadas, os depressivos quase não experimentam emoções positivas. “Eles não estão necessariamente relacionados, mas é muito comum que alguém que sofre de ansiedade crônica vá se desgastando até desenvolver um quadro depressivo. É como se o corpo desistisse de lutar contra as ameaças constantes”, afirma Lara.

A ciência não sabe explicar exatamente o que leva um indivíduo a se desequilibrar diante das preocupações, embora algumas respostas já tenham sido alcançadas. “Todos os transtornos psiquiátricos são derivados de um tripé. Em uma perna estão fatores genéticos. Em outra, aqueles desenvolvidos na gestação e na infância. E, na terceira, as ocorrências externas”, diz Nabuco. E acrescenta: “O problema é entender como a mistura se dá. Um filho de pais ansiosos pode desenvolver hábitos saudáveis e aprender a lidar com o stress. Da mesma forma, uma pessoa tranquila exposta a um ambiente hostil pode perder a cabeça”. Uma conclusão comprovada é que, em casos agudos, a influência dos genes é maior. “No transtorno de ansiedade generalizada, a influência genética chega a 30%”, estima Bernik.

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A motivação ainda é um mistério, mas os mecanismos do cérebro associados à ansiedade são bem mapeados (veja o quadro ao lado). A amígdala, nome do coração do sistema responsável pelo processamento de emoções, é mais responsiva nos ansiosos. “Ela funciona como uma espécie de alarme no cérebro, que avisa se a situação vivida é ameaçadora ou não”, diz o neurocientista Leandro Teles, autor do livro O Cérebro Ansioso (veja outras recomendações de literatura no quadro abaixo). O córtex pré-frontal, mais à frente, opera o raciocínio lógico e a tomada de decisões. “O córtex e a amígdala dialogam, por assim dizer. Diante de um estímulo de medo, o córtex procura entender a razão e decidir o que fazer, mas no cérebro do ansioso ele se sobrecarrega nessa função por causa da tensão exagerada vinda da amígdala, e tudo fica parecendo urgente”, diz Teles. Estudos recentes mostram que ansiosos sofrem alterações também no fascículo uncinado, um feixe de neurônios que liga a razão às emoções. “Essa estrutura é mais curta nas pessoas altamente ansiosas, o que provoca falha na comunicação entre amígdala e córtex”, afirma Bernik.

Além de medicação e psicoterapia, há métodos naturais que podem ser eficientes na prevenção de crises de ansiedade, e a meditação, essa prática tão menosprezada, é um deles. Pesquisa da escola de medicina da Universidade Harvard revela que meditar diminui sintomas como dor e insônia. “Manter a atenção plena na respiração resulta em melhor oxigenação do cérebro”, diz Bernik. Diante da abundância de ansiosos, crônicos ou não (faça o teste ao final desta reportagem) e veja em que categoria você se encaixa), em busca de solução para seus problemas, a indústria de aplicativos de celular reagiu à altura, produzindo uma infinidade de “ooohhhmmm” na tela do celular. O britânico Headspace oferece meditações guiadas e registra mais de 31 milhões de usuários. O brasileiro Querida Ansiedade passa de 1 milhão de downloads. Exercício físico é outra recomendação dos especialistas, porque mexer-se produz serotonina (ou seja, bem-estar).

Outra dica, que causa arrepios nos muito ansiosos, é tirar folga das redes sociais, principalmente na hora de ir para a cama, e a justificava — bem plausível, acredite — está no DNA. “Nosso cérebro se desenvolveu há milhares de anos, quando ainda vivíamos em comunidades pequenas. Era fácil identificar aqueles que se destacavam e reservar para eles a maior parte da comida”, explica Cristiano Nabuco, especialista em vício em redes. “As redes sociais exibem infinitas manifestações de sucesso. O cérebro entende que todos são poderosos, prepara-se para brigar por sua parte, e dá-se a ansiedade.” Trocando em miúdos: se todo mundo tem casa linda e férias maravilhosas, eu também tenho de ter. Pausa para a taquicardia.

Passar o dia grudado nas redes sociais é justamente uma das causas apontadas para explicar a presença dos brasileiros no topo do ranking de ansiedade da OMS. Uma pesquisa recente da Sociedade para a Saúde Pública da Inglaterra mostrou que as redes são mais viciantes que álcool e cigarro. Entre elas, o Instagram é a mais prejudicial para a mente dos jovens — e o Brasil é o segundo maior usuário desse aplicativo (o primeiro são os Estados Unidos). São Paulo, a maior cidade do país, apresenta índices de ansiedade superiores à média nacional: cerca de 19% dos paulistanos sofrem do transtorno. É evidente que pobreza, desemprego e instabilidade econômica têm sua parcela de responsabilidade. “O Brasil é instável. Muita gente tem muito a perder. A ansiedade não se nutre só da desgraça”, analisa Teles. Adicionando-se à conta a polarização política, que deve ter feito muitos ansiosos engasgar com o peru com farofa das ceias de fim de ano, dá para entender por que o Brasil se tornou a expressão do “mal do século”. A solução está em respirar, relaxar, respirar, relaxar. Mas quem tem paciência?


NA CABECEIRA

Leituras úteis para quem quer saber mais sobre a ansiedade do ponto de vista científico ou do ponto de vista de quem já sofreu as dores do transtorno

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‘Meus Tempos de Ansiedade — Medo, Esperança, Terror e a Busca da Paz de Espírito’ (Scott Stossel, Companhia das Letras) (//Divulgação)

O editor da revista americana The Atlantic alia a própria experiência com a ansiedade a uma vasta pesquisa científica para explicar o distúrbio


‘10% Mais Feliz’ (Dan Harris, Editora Sextante) (//Divulgação)

Depois de sofrer uma crise no ar, o apresentador da rede americana ABC fala abertamente sobre sua doença. Também explora o tema em entrevistas com personalidades como o dalai-lama e Deepak Chopra


O cérebro ansioso (Leandro Teles, Editora Alaúde) (//Divulgação)

Um mergulho na mente de quem sofre de ansiedade conduzido por um neurocientista que usa linguagem compreensível para abordar modos de refreá-la e tratamentos possíveis


‘Mentes Ansiosas — O Medo e a Ansiedade Nossos de Cada Dia’ (Ana Beatriz Barbosa Silva, Editora Principium) (//Divulgação)

A psiquiatra escreve sobre casos reais coletados em anos de prática clínica


‘Depois a Louca Sou Eu’ (Tati Bernardi, Companhia das Letras) (//Divulgação)

A roteirista e escritora narra de maneira leve e bem-humorada sua vivência com transtornos de pânico e ansiedade

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(Arte/VEJA)

Publicado em VEJA de 2 de janeiro de 2019, edição nº 2615

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