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Não vimos seu sorriso

Marcela Campos relata um difícil adeus: a morte da filha na barriga e o amparo do hospital em Berlim

Por Marcela Campos
Atualizado em 21 jun 2019, 07h00 - Publicado em 21 jun 2019, 07h00
(Josephine Neubert/Dein Sternenkind/.)

Na manhã de 28 de fevereiro, em Berlim, fiquei lavando e passando roupinhas de recém-nascido, feliz com a aproximação do nascimento de Natália, uma bebê desejada, fruto de anos de tentativas e de uma fertilização in vitro. A gravidez foi exemplar, sem intercorrências, e os médicos diziam que minha filha era saudável. À tarde, porém, senti um movimento abrupto, um tranco na barriga. Fiz carinho em Natália e cantei. Meu marido, Carlos Augusto de Resende, 37 anos, chegou do trabalho, e ela não se mexeu para o pai, como de costume. Tomei banho de banheira, comi sorvete e nada. Deitamos para dormir e chorei. Pela manhã, escrevi à hebamme (espécie de enfermeira obstétrica aqui na Alemanha) que acompanhou o meu pré-natal. “Se for ficar mais tranquila, venha ao hospital”, ela respondeu, em tom despreocupado. Mas havia algo errado, eu sentia.

No hospital, deitei-me na maca, e a mão da hebamme tremia enquanto perscrutava minha barriga. “São 72 batimentos por minuto, muito fracos. Teremos de fazer uma cesárea de emergência.” Com a chegada da equipe médica, respirei aliviada: logo a minha filha estaria nos meus braços. A médica realizou um novo exame e repousou a mão na minha perna. “Não há batimento cardíaco”, ela disse. Foi um choque. A obstetra explicou que, muito possivelmente, a enfermeira havia auscultado os meus batimentos, e não os da bebê. Recomendaram-me fazer um parto normal. Fui para casa, peguei a mala da maternidade e fraldas. Voltamos ao hospital e, em menos de doze horas de contrações, dei à luz Natália, com 49 centímetros e 3,225 quilos, às 6h18 de 2 de março de 2019, num parto natural e de cócoras, como planejado.

Marcela, o marido e a filha Natália no dia do parto, no hospital St. Joseph Krankenhaus, em Berlim, na Alemanha (Josephine Neubert/Dein Sternenkind/.)

A hebamme nos lembrou que, embora a bebê estivesse sem vida, cabia a nós darmos a melhor recepção e a melhor despedida que pudéssemos. Ela nos ofereceu a opção de levá­-la para casa por alguns dias. Mas sabíamos que isso tornaria a despedida ainda mais difícil. A enfermeira pediu permissão para acionar uma fotógrafa voluntária, da ONG Dein Sternenkind, que registra imagens carinhosas de bebês natimortos. Enquanto acalentávamos nossa filha, a fotógrafa fez as fotos, discretamente. Recebemos uma cesta de vime, um colchãozinho e um lençol rosa. Imprimimos as digitais das mãos e dos pés de Natália em um papel-cartão branco, e cortamos uma mechinha castanha de seu cabelinho. Ganhamos sementes de miosótis, uma florzinha azul aqui chamada vergiss-mich­-nicht, a “não-me-esqueças”. Enrolamos seu corpo no lençol rosa e o pusemos na cesta de vime. Um corpo sem vida não passa frio, mas, mesmo assim, coloquei a touquinha cedida pelo hospital. Ela ficaria na câmara fria até o dia do velório.

Em 13 de março, entrava muita luz natural pelas janelas da sala cedida pelo hospital. Ao fundo, uma imagem de Nossa Senhora e, no centro, uma mesa baixa coberta por um tecido dourado — e a nossa filha. Pensei que não fôssemos conseguir vesti-la. Ao olhar para o seu rosto, porém, não pude imaginar quem a tocaria com mais afeto do que seu pai e eu. Depois de vesti-la com a roupinha da saída da maternidade, coloquei seu corpo no pequeno caixão de madeira. No crematório, uma semana depois, pudemos pegá-la nos braços pela última vez.

Marcela coloca a filha Natália no caixão durante o velório da bebê na sala cedida pelo hospital St. Joseph, em Berlim (Jess Walsh/Dein Sternenkind/.)

Não conhecemos seu olhar, não ouvimos sua voz, não vimos seu sorriso. Foram momentos de alegria e de tristeza. Perder nossa primogênita foi o pior que já passamos, mas teria sido ainda mais difícil sem o protocolo do hospital St. Joseph Krankenhaus para tratar de perdas gestacionais e neonatais. Encontrei apoio ao dividir minha dor nas redes sociais (@marcelamarelaa). Ao ouvirmos outros relatos, sentimo-nos menos solitários. Infelizmente, recebo histórias do Brasil de pais que não tiveram o mesmo apoio, com maternidades sumindo com o corpo do bebê ou entregando-o em um saco de lixo. Espero que esse tratamento mude no país e que hospitais adotem protocolos para apoiar casais com respeito e empatia.

Depoimento dado a Alessandra Kianek

Publicado em VEJA de 26 de junho de 2019, edição nº 2640

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