Um relato importado da França ajuda a entender o humor do Brasil nos primeiros dias depois da eclosão da Covid-19. O Café de Flore, em cujas cadeiras e banquetas de forro vermelho se sentavam Simone de Beauvoir e Jean-Paul Sartre, e a Brasserie Lipp permaneceram religiosamente abertos durante os dias plúmbeos da ocupação alemã, nos anos da II Guerra Mundial, ao som de Maurice Chevalier. Na semana passada, pela primeira vez na história, fecharam as portas. Disse um garçom, habituado a ouvir de seus colegas os relatos dos anos 1940: “Ao menos sabíamos contra quem estávamos lutando, os nazistas. Agora não temos a menor ideia”. Esse medo difuso, sem rosto, um tanto recôndito, visto pela frieza da estatística — eram mais de 500 casos positivos confirmados e sete mortes de brasileiros até as 16h da quinta-feira 19 —, explica a movimentação algo em câmera lenta de mudança de comportamento no cotidiano do país. Não ajudou, é claro, o presidente Jair Bolsonaro ter dito que havia “histeria” coletiva e que, apesar de tudo, ele e a primeira-dama Michelle comemorariam seus aniversários como de costume, com “uma festinha tradicional”.
O exemplo, como se vê claramente, não vem de cima. E o impacto acaba acontecendo na população. Nas praias do Rio de Janeiro, no fim de semana de 14 e 15, a Defesa Civil pôs carros de bombeiro com alto-falantes conclamando moradores a adotar o distanciamento social: “Por favor, para sua segurança e a de seus vizinhos, amigos e familiares, volte para casa. A hora é de conscientização”. Em um primeiro momento, que se estendeu mais que o desejado, o clamor mal foi escutado por ouvidos moucos, alheios à urgência. Diz o psicobiólogo Ricardo Monezi, professor da PUC-SP: “Diante de pandemias ou crises muito grandes, o cérebro tenta proteger sua integridade ao negar ou minimizar a situação para evitar exagerada ansiedade negativa associada ao medo”.
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Clique e AssineÉ uma postura humana, demasiadamente humana, que em situações excepcionais como a de hoje exige alerta — sem pânico, porque na maioria dos casos, reafirme-se com estridência, a Covid-19 é leve. O índice de letalidade é de 4% — passa disso apenas a partir dos 60 anos de idade; 14,8% dos idosos com mais de 80 anos não resistem à doença. Mas cada dia de medidas preventivas é um dia em que vidas são salvas. A resposta necessária veio, finalmente, com decisões firmes de alguns governadores e prefeitos (leia na pág. 42), que impuseram a suspensão de aulas e o fechamento do comércio, e indicações equilibradas do Ministério da Saúde. E então, mas não como num passe de mágica, e sim como resposta a uma leva de informações precisas, ancoradas na ciência e na medicina, as areias das praias começaram a se esvaziar, os carros já não circulam tanto, o home office virou a expressão em inglês mais conhecida no Brasil, missas foram realizadas ao ar livre, torneios esportivos pararam, fronteiras foram fechadas, rolos de papel higiênico sumiram dos supermercados etc. Gestos banais e carinhosos como o beijo e o abraço, brasileiríssimos, foram trocados pelo toque de cotovelos. Para ficar com uma máxima coloquial: caiu a ficha (talvez menos a do presidente da República), e o vírus da sensatez circula descontroladamente, eis uma boa-nova.
E a ficha caiu, insista-se, adequada ao histórico de países que já estão alguns passos à frente da pandemia (como a China e a Itália) e atrelada a estudos epidemiológicos. A experiência do que houve no exterior e a sabedoria acumulada impõem, imediatamente, um só caminho: total adesão à única saída comprovadamente eficaz — o corte abrupto da interação entre as pessoas, de modo a reduzir a toada de disseminação virótica. “Cada um precisa renunciar à sua liberdade individual para proteger a todos, especialmente os doentes e idosos”, diz Denise Cotrim, infectologista do Centro de Saúde-Escola Germano Sinval Faria, atrelado à Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). O distanciamento social que se pede é diferente da quarentena, medida mais radical, de total apartamento, com proibição assinada pelo governo, como aconteceu na China e acontece na Itália, e indicada para casos confirmados ou suspeitos. O que deve ser feito, aqui e agora, é ficar em casa, sair o mínimo possível para a rua, evitar aglomerações, manter-se a pelo menos 1 metro e meio de distância de outra pessoa, além dos evidentes cuidados de higiene. Essa é uma intervenção que, comprovam levantamentos feitos ao longo de décadas de epidemias, consegue “achatar” a curva de contaminação, evitando o saturamento do sistema de saúde, como mostra, com evidente e acachapante clareza, o gráfico ao lado.
E fica no ar a pergunta cuja resposta ainda inexiste, infelizmente: até quando vai a pandemia, até quando o esvaziamento do cotidiano será compulsório? Uma vez mais, o único atalho que autoriza alguma afirmação coerente é medir episódios anteriores. Na China, o pico se deu dois meses depois do primeiro caso. E apenas quatro meses após deflagrada a epidemia é que a vida retoma alguma normalidade, com o cancelamento de leis draconianas. Na Coreia do Sul, o surto explodiu em apenas quinze dias, como na Itália. Não há um tempo certo. As autoridades estimam que, no Brasil, o auge de casos acontecerá em meados de abril. E quando será possível respirar aliviado e dizer acabou? “Quando o vírus ficar sem pessoas suscetíveis à infecção e a Covid-19 não puder mais se propagar”, diz a epidemiologista Marilia Sá Carvalho, da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz. Isso pode ocorrer com menos pessoas circulando, com a medicação dos enfermos, já imunes, e a vacinação, procedimento ainda remoto. Até lá, o mundo e o Brasil, o Brasil e o mundo, terão de se comportar como o garçom francês que não vê o microrganismo, mas sabe que ele existe, insidioso — e não há nele nada de histeria, ao contrário, é a certeza entregue pelo conhecimento.
Publicado em VEJA de 25 de março de 2020, edição nº 2679