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Cientistas relatam rotina de ataques pessoais e a familiares na pandemia

"Espero que você morra." Esta foi uma das agressões verbais registradas em levantamento feito pela revista científica Nature com pesquisadores

Por Simone Blanes Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 16 out 2021, 12h05 - Publicado em 16 out 2021, 12h04

Setembro de 2020. A médica infectologista Krutika Kuppalli estava em seu novo emprego havia apenas uma semana quando alguém ligou para ela, no telefone de sua casa, e ameaçou matá-la. Ela, que acabara de se mudar da Califórnia para a Universidade Médica da Carolina do Sul, em Charleston, nos Estados Unidos, já vinha lidando com abusos online após dar entrevistas a veículos importantes sobre a Covid-19 e testemunhar diante do comitê do Congresso dos Estados Unidos sobre a realização de eleições seguras durante a pandemia. O telefonema, porém, foi assustador. “Fiquei muito ansiosa, nervosa e chateada”, diz Krutika, que agora trabalha na sede da Organização Mundial da Saúde (OMS), em Genebra, na Suíça. A cientista chegou a chamar a polícia, mas até hoje não sabe se tomaram qualquer atitude. E os e-mails, ligações e comentários online ameaçadores continuaram. Após uma segunda ligação com ameaças de morte, Krutika escutou do policial que a atendera para que comprasse uma arma para si.

A experiência pela qual passou a cientista nesse período de pandemia não é incomum. Uma pesquisa da Nature – uma das mais respeitadas publicações científicas do mundo – com mais de 300 pesquisadores que concederam entrevistas à mídia sobre a Covid-19 – muitos também comentaram nas redes sociais – encontrou uma amplo número de profissionais que passaram por experiência de assédio e abuso. Para se ter uma ideia, dos 300 entrevistados, 15% disseram ter recebido ameaças de morte.

Alguns exemplos importantes de assédio foram bem documentados. O infectologista americano Anthony Fauci, chefe do Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas dos Estados Unidos, por exemplo, chegou ao ponto de ter que andar com seguranças pessoais depois que ele e sua família receberam ameaças de morte. O consultor médico chefe do Reino Unido, Chris Whitty, foi agarrado e empurrado na rua; o virologista alemão Christian Drosten recebeu um pacote contendo um frasco com um líquido rotulado como “positivo” e uma nota dizendo-lhe para beber o conteúdo. O virologista belga Marc Van Ranst e sua família foram colocados sob proteção em uma casa enquanto um atirador militar saiu em fuga após deixar na casa dele uma carta ameaçadora.

Esses exemplos são extremos. Mas, na pesquisa da Nature, mais de dois terços dos pesquisadores relataram experiências negativas como resultado de suas aparições na mídia ou devido a comentários nas redes sociais e 22% receberam ameaças de violência física ou sexual. Alguns cientistas disseram ainda que seus chefes recebiam reclamações sobre eles ou que seus endereços residenciais foram revelados online. Seis pesquisadores declararam que foram fisicamente atacados.

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Campanhas de mídia social coordenadas e e-mails ou telefonemas ameaçadores para cientistas, porém, não é algo novo: tópicos como mudança climática, vacinação e os efeitos da violência armada já atraíram ataques semelhantes no passado. Muitos, porém, pela intensidade, enxergaram os abusos atuais como um fenômeno indesejado ligado à pandemia. E, por isso, queriam que a extensão do problema fosse discutida mais abertamente. “Acredito que governos nacionais, agências de financiamento e sociedades científicas não têm feito o suficiente para defender publicamente os cientistas”, escreveu um pesquisador em sua resposta à pesquisa.

Alguns pesquisadores disseram que aprenderam a lidar com o assédio, aceitando-o como um efeito colateral desagradável, mas esperado, de levar informações ao público. E 85% dos cientistas pesquisados relataram que suas experiências de envolvimento com a mídia foram sempre, ou em sua maioria, positivas, mesmo sendo assediados. “Acho que os cientistas precisam de treinamento sobre como se envolver com a mídia e também sobre o que esperar dos haters – é apenas uma parte da comunicação digital”, escreveu outro participante.

Mas o levantamento da Nature sugere que, embora os pesquisadores tentem ignorar o abuso, isso já pode ter tido um efeito assustador na comunicação científica. Até porque os que relataram maior frequência de ataques pessoais estavam mais propensos a assumir que as experiências afetaram sua disposição de falar com a mídia no futuro. “Algo muito preocupante durante uma pandemia global que foi acompanhada por uma bateria de desinformação”, diz Fiona Fox, executiva-chefe do UK Science Media Centre (SMC), em Londres – uma organização que coleta comentários científicos e organiza coletivas de imprensa para jornalistas. “É uma grande perda se um cientista que estava compartilhando sua experiência com a mídia for retirado de um debate público no momento em que mais precisamos dele”, completa.

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Rastreamento de assédio

Em junho, o Australian Science Media Centre, em Adelaide, perguntou aos pesquisadores sobre suas experiências com a mídia nesse período de Covid-19. “O centro foi alertado sobre campanhas de intimidação e ódio online dirigidas a cientistas e queria saber se era um problema mais amplo”, relata Lyndal Byford, diretora do centro. Os dados foram compartilhados com a Nature. Cinquenta pesquisadores responderam à pesquisa informal do SMC. Quase um terço relatou experimentar sofrimento emocional ou psicológico depois de falar sobre a Covid-19; seis pessoas (12%) contaram ter recebido ameaças de morte e seis disseram ter recebido ameaças de violência física ou sexual. “Acho que qualquer organização envolvida em ajudar cientistas a se comunicar acharia isso bastante perturbador”, diz Lyndal.

Para ter uma noção mais ampla da escala do assédio, a Nature adaptou a pesquisa do SMC australiano e pediu aos centros de mídia científica no Reino Unido, Canadá, Taiwan, Nova Zelândia e Alemanha que a enviassem a cientistas conhecidos por eles. Os responsáveis pela Nature também enviaram e-mails a pesquisadores dos Estados Unidos e do Brasil que foram citados com destaque na mídia. Os resultados revelam que cientistas em muitos países estão enfrentando abusos relacionados à pandemia e as proporções relatadas foram maiores do que na pesquisa australiana. Mais de um quarto dos entrevistados disseram que sempre recebiam comentários de haters ou foram pessoalmente atacados depois de falar na mídia sobre a doença. Mais de 40% confirmaram sentir sofrimento emocional ou psicológico depois de fazer comentários na mídia ou nas redes sociais.

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Ciência politizada

Até certo ponto, o assédio aos cientistas reflete seu crescente status como figuras públicas. “Quanto mais proeminente você for, mais abuso receberá”, diz a historiadora Heidi Tworek, da Universidade Britânica Columbia, em Vancouver, no Canadá. “A maioria dos departamentos de saúde pública dos EUA também recebeu assédio dirigido a funcionários”, acrescenta Beth Resnick, pesquisadora de saúde da Escola de Saúde Pública Johns Hopkins, em Baltimore, que pesquisou 580 departamentos em um estudo ainda não publicado.

Esses ataques podem ter pouco a ver com a ciência em si e mais sobre com quem está falando. “Se você é uma mulher ou uma pessoa negra de um grupo marginalizado, o abuso provavelmente incluirá a questão de suas características pessoais”, explica Heidi. “Por exemplo, a diretora de saúde pública do Canadá, Theresa Tam, é asiática-canadense e os ataques contra ela incluem uma camada de racismo.” Krutika, uma cientista negra, diz que também passou por isso. Os agressores disseram que ela “precisava voltar de onde veio”. Tanto o SMC australiano quanto a pesquisa da revista, no entanto, não encontraram diferença clara entre as proporções de ameaças violentas recebidas por homens e mulheres.

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Alguns aspectos da ciência voltada à Covid-19 tornaram-se tão politizados que é difícil mencioná-los sem atrair uma onda de ataque haters. O epidemiologista Gideon Meyerowitz-Katz, da Universidade de Wollongong, na Austrália, que ganhou seguidores no Twitter por sua descrição detalhada de trabalhos de pesquisa, conta que os dois principais gatilhos para as ofensas e ameaças são as vacinas e a droga antiparasitária ivermectina, que não tem efeito algum sobre a Covid-19. “Sempre que você escreve sobre vacinas – qualquer pessoa desse mundo pode lhe contar a mesma história – recebe ameaças de morte vagas ou, às vezes, até mais específicas. É ódio sem fim”, diz. “Acho, porém, que recebi mais ameaças pela ivermectina do que qualquer coisa que já fiz antes. São pessoas anônimas me enviando e-mails de contas estranhas dizendo ‘Espero que você morra’ ou ‘Se você estivesse perto de mim, eu atiraria em você.’” Andrew Hill, um farmacologista do Instituto de Medicina Translacional da Universidade de Liverpool, na Inglaterra, foi outro que sofreu abuso por parte dos defensores da ivermectina.  Após ele e colegas revisarem uma análise que sugeria que a droga tinha benefício e concluírem que o trabalho não apresentava dados consistentes, Hill recebeu imagens de enforcados e caixões, com haters dizendo que ele seria submetido a ‘julgamentos de Nuremberg’ e que ele e seus filhos iriam ‘queimar no inferno’. Hill decidiu então fechar sua conta no Twitter.

No Brasil, a microbiologista Nataália Pasternak, que virou uma porta voz da ciência, também notou um aumento nos ataques online ao falar sobre tratamentos sem qualquer comprovação científica contra a Covid-19 propagandeados pelo governo brasileiro. Ao aparecer nos principais veículos de imprensa do país e produzir seu próprio programa no YouTube, Natália recebeu comentários que iam desde críticas à sua voz e aparência até falsos argumentos dizendo que ela não era uma cientista de verdade. Alguns negacionistas também tentaram usar a lei para silenciar seus alvos. Um grupo de apoiadores do presidente Jair Bolsonaro tentou processar Natália sob o argumento de que a cientista o difamou quando o comparou a uma praga. A ação foi julgada improcedente.

Origens do vírus

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Outro tópico que atrai ataques é a questão das origens do SARS-CoV-2. Ambos os SMCs, australiano e britânico, dizem que têm lutado para encontrar cientistas que estejam dispostos a comentar publicamente o assunto. A maioria tem medo de serem atacados. O SMC do Reino Unido abordou mais de vinte cientistas para participar de um briefing sobre esta questão e todos recusaram.

A virologista Danielle Anderson, do Instituto Peter Doherty para Infecção e Imunidade da Universidade de Melbourne, na Austrália, sofreu um intenso e coordenado abuso online depois de escrever uma crítica a um artigo que sugeria que o SARS-CoV -2 teria vazado do Instituto de Virologia Wuhan (WIV), na China. Na época, ela trabalhava na Duke – Escola de Medicina da Universidade Nacional de Singapura e havia colaborado com o WIV desde a epidemia de síndrome respiratória aguda grave (SARS), em 2002. Recebeu a seguinte mensagem: “Coma um morcego e morra, vadia”.

Peter Daszak, presidente da EcoHealth Alliance, foi outro assediado pelo tema. Colaborador do WIV de longa data, ele viajou para Wuhan em janeiro, como parte de uma investigação coordenada pela OMS sobre as origens do SARS-CoV-2. Logo depois, recebeu uma carta contendo um pó branco, teve seu endereço postado online e regularmente recebe ameaças de morte.

Estratégias de enfrentamento

Para pesquisadores que sofrem abusos online, as estratégias individuais de enfrentamento incluem tentar ignorá-los; filtrar e bloquear e-mails e haters nas mídias sociais; e, em último caso, deletar a conta em redes mais específicas. Só que não é fácil. “É muito angustiante todos os dias você abrir seus e-mails, seu Twitter e receber ameaças de morte, prejudicando seu trabalho”, diz Hill. Também leva tempo para conseguir filtrar os abusadores. Por isso ele tomou a decisão de excluir sua conta no Twitter.

Krutika manteve sua presença nas redes sociais, porém é mais cuidadosa com a forma como as usa. Sua regra agora é não responder a comentários ou postagens quando estiver chateada ou zangada e, em alguns casos, nem responder. “Eu simplesmente não leio os comentários. Não me envolvo”. Trish Greenhalgh, pesquisadora de saúde e médica da Universidade Oxford, no Reino Unido, disse no Twitter, em março, que havia sofrido um “abuso malicioso” de outro acadêmico e estava bloqueando os seguidores de seu agressor para dificultar os ataques. Ela havia feito um post no Twitter avisando que se alguém atacasse seus alunos de doutorado, ela tentaria identificar o agressor para denunciá-lo à universidade.

 

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