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Bem pior que videogame

Os adolescentes brasileiros bebem cada vez mais cedo — e em muitos casos com o aval dos pais. Pela primeira vez, o consumo é maior entre as meninas

Por Adriana Dias Lopes | fotos: Egberto Nogueira
Atualizado em 26 jun 2019, 15h45 - Publicado em 14 jun 2019, 07h00

Faltam poucos minutos para tocar o tão esperado sinal da última aula de sexta-feira numa escola de classe média alta da Zona Oeste de São Paulo. A aluna de 15 anos cria um grupo de WhatsApp com dezenove colegas da classe, com o nome “Social da Pê hoje à noite”. Pê é o apelido pelo qual os amigos a chamam desde a infância. “Social” é o nome do evento que ela vai organizar em casa. Em menos de quinze minutos, seis garotas e quatro garotos confirmam a presença. O esquema é definido on-line: “10 reais para cada um”. A vaquinha é coletada para o “sucão”, uma mistura de vodca e suco em pó adocicado (metade de um, metade do outro, na receita mais comum), que ela vai preparar e servir na jarra de água.


O COMEÇO COM UMA BEBIDA TIPO ICE, QUE PARECE REFRIGERANTE
“Bebo desde os 13 anos, em geral na casa dos meus amigos. Minha mãe foi a primeira pessoa a me oferecer álcool. Ela preferiu que eu aprendesse a beber com ela do que fora de casa. Comecei com aquela bebida tipo ice, docinha, que parece refrigerante. Não achei ruim. Hoje gosto de bebida com fruta. Minha mãe sabe de tudo. É muito melhor do que fazer escondido. Eu me acho responsável. Tenho um irmão de 14 anos que não bebe. Ele nem curte sair. Ele é um pouco infantil ainda.”
T.A., de 15 anos, estudante


Com o valor arrecadado, Pê compra quatro garrafas de vodca, dois saquinhos de suco de laranja em pó e pacotes de salgadinho. Dois dos vasilhames são usados na mistura — os outros dois ficam na mesa, à disposição para quem quiser reabastecer o copo. Às 19 horas, os amigos começam a chegar. Os pais de Pê estão jantando fora. Alguns levam garrafinhas de cachaça adocicada. Uns conversam, outros namoram, dançam sob luzinhas coloridas. Todos bebem. Quatro horas depois, começam a ligar para os pais para ir pegá-los na portaria do prédio.

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A FACILIDADE DO RG FALSIFICADO
“Minha primeira vez foi na festa junina do prédio, eu tinha 11 anos. Minha amiga, um ano mais velha, pegou uma vodca doce na casa dos pais. Depois vieram as férias e bebi de novo. Gostei. No começo a gente bebe para ficar louco. Hoje bebo menos, mas bebidas mais amargas, como uma cerveja. Dá para beber na maioria dos lugares. Todo mundo tem RG falso. Quando eu tinha 14 anos, cheguei meio grogue em casa e minha mãe descobriu que eu gostava de beber. Conversamos, e hoje ela sabe.”
A.H., de 15 anos, estudante


(./.)

Cenas como essa se multiplicam pelo Brasil. Ao longo de duas semanas, a reportagem de VEJA conversou com dezenas de jovens em três estados do país, São Paulo, Rio de Janeiro e Acre, acompanhou-os nas ruas, à noite, em bares e em ambientes domésticos. A constatação: debaixo do guarda-chuva paterno, supostamente protegido e saudável, ou fora dele, os adolescentes estão bebendo muito precocemente, e como adultos. É problema recorrente, que atravessa gerações e nunca saiu do olhar das entidades de controle da saúde e de vigilância policial, mas que agora ganha as cores fortes de levantamentos minuciosos.

Estudo realizado pelo Centro de Informações sobre Saúde e Álcool (Cisa), com base em dados do IBGE, mostrou que 25,1% das garotas com idade entre 13 e 15 anos bebem ao menos uma dose por mês — há uma década, eram 20%. Entre os garotos, o índice é de 22,5% — dez anos atrás, batia nos 28%. A mudança ilumina um novíssimo problema: elas bebem mais do que eles. Com uma agravante, a título de comparação: os índices nacionais ultrapassaram os dos Estados Unidos. Entre os americanos com idade até 15 anos, o consumo não passa de 10% para ambos os sexos, de acordo com o Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos Estados Unidos.

“Tomei meu primeiro gole com 11 anos de idade, na festa junina dentro do meu prédio. Uma amiga minha desceu com uma vodca docinha que ela pegou na casa dos pais. Gostei de cara do sabor e da sensação”, diz A.H., de 15 anos, de São Paulo. “Aos 15 já bebia com os amigos da escola, sempre na casa de alguém da turma. Fazíamos isso pelo menos uma vez por semana. Rolava todo tipo de bebida”, afirma S.D., de 17 anos, do Acre (leia outros depoimentos ao longo desta reportagem).

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A precocidade na idade é espantosa. O estudo do Cisa revelou que a meninada começa a beber aos 12 anos e meio. Os riscos para a saúde são imensos. Os órgãos ainda estão em formação, em especial o cérebro, a caminho da organização neuronal. “Expor o cérebro do adolescente à bebida alcoólica faz com que ele supervalorize o prazer químico do álcool”, diz Ludhmi­la Abrahão Hajjar, intensivista do Hospital Sírio-Libanês e do Instituto do Coração, em São Paulo. Trabalhos científicos mostram que uma pessoa que passa a beber regularmente antes dos 15 anos corre risco cinco vezes maior de se tornar dependente em relação a quem começa a beber aos 21 anos. A vulnerabilidade feminina, nesse aspecto, é notória. O organismo da mulher tem quantidades menores de enzimas responsáveis pela metabolização do álcool, o que faz com que a substância demore mais tempo para ser eliminada.


A BEBIDA COMO ATALHO SOCIAL
“Sou muito tímida e a bebida me deixa mais solta para interagir com meus amigos e dançar. Eu gosto de tudo, não importa o que tem para beber. Mas prefiro vodca e cachaça adocicada. E vinho com maçã também. São mais baratos e fortes. Comecei a beber com uns 16 anos. Prefiro fazer isso em sociais, festinhas pequenas. É mais seguro e tranquilo. Em geral, a gente faz uma vaquinha, cada um dá de 10 a 20 reais. Na maioria das vezes alguém da turma com mais de 18 anos é quem compra.”
E.D., 17 anos, estudante

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Invariavelmente, a porta de entrada para o consumo de álcool são as bebidas doces — e baratas. Garrafas de 900 mililitros de vodca com sabor de maracujá, frutas vermelhas, uva, limão têm 13,5% de teor alcoólico e custam 15 reais, em média. A cachaça adocicada com mel de 500 mililitros (também com 13,5% de álcool) é vendida a menos de 4 reais. “As bebidas alcoólicas adocicadas e com gás são naturalmente palatáveis aos jovens, e elas estão sendo lançadas em profusão”, diz Luiza Amorim, gerente de comunicação da ONG internacional Vital Strategies, especializada em criar estratégias para desenvolver políticas de saúde pública. A explicação é fisiológica. O gosto amargo é sentido mais intensamente por quem é jovem. Isso acontece porque na infância e na adolescência a língua possui uma quantidade enorme de glândulas responsáveis pelo gosto. Nessa fase somos mais sensíveis ao amargo, portanto. É por volta dos 20 anos que o paladar está preparado para apreciar todos os sabores. Traduzindo para o universo alcoólico: somente na idade adulta o paladar absorve com mais gosto o amargo da cerveja, do vinho e do destilado sem a adição de açúcar.

VISTA GROSSA – A dificuldade para um menor de idade comprar bebidas nas ruas é quase inexistente (Egberto Nogueira/Ímãfotogaleria/.)

O descaso e a inépcia parecem conspirar a favor da epidemia de consumo de álcool entre os jovens. Apesar de a legislação proibir a venda, faz-se de conta que o veto não existe. O eleito na turma para comprar qualquer tipo de marca e produto alcoólico é o “cara com cara de mais velho”. Mas, se o lugar exigir um documento, o adolescente mostra um RG falsificado. O valor de um documento adulterado vai de 150 a 300 reais. Quanto mais alto o preço, mais aprimorada é a falsificação.

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(./.)

O estudo do Cisa revelou outro dado impressionante: há adolescentes que começam a beber com o aval da família. “Minha mãe foi a primeira pessoa a me oferecer álcool. Ela preferiu que eu aprendesse a beber com ela do que fora de casa”, diz T.A., de 15 anos. Os médicos refutam a ideia veementemente. Em 2012, o Hospital Albert Einstein, em São Paulo, uma das maiores referências em saúde do país, inaugurou um programa pioneiro nos cuidados de adolescentes: o paciente com idade até 16 anos que dava entrada pelo pronto-socorro por causa de álcool passava por um protocolo especial. Além de o jovem receber atendimento clínico, ele e os pais eram orientados sobre os riscos do consumo de bebida na adolescência. O serviço fechou quatro anos depois. O motivo: a maioria dos pais refutou o programa — ou porque eles não queriam falar do assunto ou porque negavam o problema do filho. Diz o psiquiatra Ronaldo Laranjeira, da Universidade Federal de São Paulo, especialista no tema: “Não há uma causa para o aumento do consumo de álcool entre os adolescentes. Há várias. Pais omissos, venda facilitada de bebidas e, no caso das meninas, para piorar, a ilusão de que, se beberem, estarão se equiparando socialmente aos homens”. Parece inofensivo, mas trata-se de um sinal de alerta. Se muitos adultos não conseguem controlar o exagero e os efeitos nocivos do álcool, a situação fica ainda mais perigosa com crianças.

Colaboraram Letícia Passos e Fabio Pontes

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Publicado em VEJA de 19 de junho de 2019, edição nº 2639

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