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Barco leva atendimento médico e odontológico a populações desassistidas

Hospital flutuante do projeto Doutores das Águas percorre rios e igarapés da Amazônia para dar assistência a brasileiros esquecidos pelo poder público

Por Natalia Cuminale Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 29 jul 2019, 15h21 - Publicado em 26 jul 2019, 07h00

O barco deixara Manaus fazia apenas uma hora, e ainda faltavam 35 para chegar a seu primeiro destino, a comunidade de Bom Jardim, mas já então não havia mais sinal de internet ou celular. A embarcação seguiu noite adentro, sob a luz da lua, a uma velocidade de 15 quilômetros por hora, desviando-se de troncos e passando por igapós, áreas de vegetação alagadiça — tudo para levar atendimento médico e odontológico às populações desassistidas da região amazônica. A riqueza natural da maior floresta do planeta contrasta com a carência de infraestrutura das comunidades ribeirinhas visitadas pelo projeto Doutores das Águas, que todo ano percorre o mesmo caminho de precariedades — 1 000 quilômetros pelos rios Amazonas, Negro, Madeira e afluentes. Nas comunidades atendidas pelos médicos e dentistas voluntários, a energia elétrica é rara, a educação, precária, e o saneamento básico inexiste. VEJA acompanhou a excur­são do barco-hospital por sete dias — de seus vinte de viagem — e testemunhou a dedicação desses profissionais a brasileiros em geral esquecidos pelo poder público.

As barreiras físicas têm sua parte na falta de assistência às comunidades à beira dos rios: poucas embarcações conseguem navegar por igarapés, os canais estreitos, de baixa profundidade, rodeados pela mata fechada. Apesar de grande — 22 metros de comprimento por 7 metros de largura, e três andares de consultórios e instalações médicas —, o barco dos doutores foi projetado para acessar lugarejos afastados. O calado (profundidade mínima para navegação) é só de 1 metro, o que permite singrar áreas rasas.

São cerca de 2 000 ribeirinhos atendidos todo ano. Eles vivem da pesca e da caça, cultivam mandioca, colhem castanhas e vendem madeira extraída ilegalmente. Uma família ganha, em média, 300 reais por mês. Embora a Amazônia seja considerada o bioma com a maior disponibilidade de água per capita, a região concentra as piores taxas de saneamento básico. Só 52,3% da população brasileira conta com rede de esgoto, e no Norte esse índice é bem pior: 10,2%. Entre os atendidos pelo barco, 60% usam fossa como banheiro e 23% o mato; 75% moram em palafita; 46% não são alfabetizados. Antes do projeto, não era incomum uma família inteira dividir a mesma escova de dentes.

Um dos consultórios do hospital flutuante: 2 000 pessoas atendidas (Rodrigo Larrabure/VEJA)

A infecção por vermes é o problema mais frequente entre os ribeirinhos. Sete em cada dez pessoas atendidas pelos médicos voluntários têm pelo menos um parasita no organismo. “As crianças são as que mais sofrem. Se não têm tratamento, vivem com anemia e desnutrição, o que prejudica o desenvolvimento”, explica o médico Francisco Leão, um dos coordenadores do projeto. Além do tratamento com vermífugos, os doutores desenvolveram um programa educacional para ensinar medidas higiênicas e prevenir parasitas. Outros problemas comuns são doenças de pele e picadas de bichos como o micuim, um tipo de carrapato característico da região. Gravidez precoce também costuma ocorrer entre as ribeirinhas. Não é raro ver jovens de 20 e poucos anos que já são mães de até cinco crianças pequenas. Entre os homens, o problema mais comum é a dor lombar, decorrência de atividades cotidianas: carregar madeira, colher castanhas ou remar.

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O barco tem quatro consultórios médicos, salas para exames, incluindo ultrassom, e quatro consultórios odontológicos com seis profissionais que atendem crianças e adultos que às vezes nunca viram um dentista antes. “Precisamos vencer o medo, ganhar a empatia e a confiança dos pacientes”, expli­ca o chefe da equipe, o dentista Luciano Moura. Quem chega ao ano seguinte sem nenhuma cárie recebe uma medalha, forma criada pelos doutores para incentivar o cuidado com a saúde bucal. A bordo do barco, um protético faz dentaduras. Neste ano foram 211 próteses — ou “chapas”, como dizem os ribeirinhos. A produção é em tempo recorde: em doze horas são feitos o molde, a prótese e a prova.

Para grande parte dos ribeirinhos, a visita do barco Doutores das Águas é o único momento em que eles encontram um médico ou dentista. A assistência à saúde na região é centralizada na zona urbana dos municípios. Em casos de necessidade, a viagem ao posto médico pode levar até três dias — e nem sempre o doente consegue atendimento. Poucos têm voadeira, um pequeno bote com motor rápido, que atinge a velocidade de 40 quilômetros por hora. É mais comum que usem a rabeta, barquinho que chega só a 10 quilômetros por hora.

Nas cidades, os ribeirinhos também buscam açúcar e óleo, que eles consomem em excesso. Neste ano, os médicos flutuantes começaram uma pesquisa, em parceira com a Universidade Santo Amaro, para avaliar a nutrição da população atendida. O cardápio dos ribeirinhos é baseado em peixes e animais caçados (anta, tatu e aves), mas há ainda um prato popular, nada saudável, chamado “fritinho” — um bolinho de açúcar e farinha. Muitas famílias compram até 30 quilos de açúcar e doze latas de óleo por mês.

PEDAGOGIA DA HIGIENE – Ribeirinhos fazem fila para uma aula prática de como escovar os dentes: esforço preventivo (Rodrigo Larrabure/VEJA)

A expedição dos Doutores das Águas é totalmente voluntária. A organização arrecada fundos de doadores particulares e empresas para custear a viagem. Todos os profissionais, de instituições renomadas, pagam a própria passagem para Manaus. “Percebemos que podemos mudar a vida das pessoas com ações muito simples. Não podemos parar”, diz Rubens Almeida Prado, consultor de pescaria esportiva e coordenador-geral do projeto. No fim da visita, os ribeirinhos recebem kits com sacos para guardar mantimentos, escova e pasta de dentes, anzol e linha para pescar, talheres, óculos para enxergar de perto e roupas.

Aliás, é durante a visita dos doutores que os moradores locais usam suas melhores roupas. O barco-hospital tornou-se um evento na região. VEJA acompanhou uma família de três adultos e quatro crianças que levou quarenta minutos, numa lancha rápida, para chegar ao ponto em que a embarcação estava atracada. “Onde é São Paulo?”, perguntou Raquel, 5 anos, quando a reportagem lhe disse de onde vinha. A menina teve dificuldade para figurar um lugar tomado de prédios e carros. Talvez por isso tenha querido saber se há pelo menos um elemento comum entre a metrópole e a floresta: “Tem árvore em São Paulo?”.

Publicado em VEJA de 31 de julho de 2019, edição nº 2645

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