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‘A saúde climática e a humana andam de mãos dadas’

Em entrevista exclusiva, CEO global da AstraZeneca expõe os desafios da sustentabilidade do sistema de saúde e por onde caminha o futuro da medicina

Por Diogo Sponchiato Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO , Paula Felix Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 19 set 2023, 13h08 - Publicado em 19 set 2023, 08h16

Não dá para falar sobre a sustentabilidade dos sistemas de saúde sem falar de outra sustentabilidade, a ambiental – e vice-versa. É o que defende o francês Pascal Soriot, CEO global da biofarmacêutica AstraZeneca.

No comando da empresa que trouxe uma das primeiras vacinas contra a Covid-19 à população, o executivo relembra o período como uma fase de muitos aprendizados, que estão abrindo caminho inclusive a novas vacinas e terapias contra outros vírus e bactérias.

Ciente de que a prevenção de novas epidemias passa pelos cuidados com o planeta, Soriot foi um dos propulsores do programa AZ Forest, em que o laboratório financiará o plantio de milhões de mudas de árvores pelo globo – experiência que já começou no estado de São Paulo.

A ideia é auxiliar o planeta a absorver o carbono emitido pela indústria, inclusive a farmacêutica. Um movimento para reduzir as emissões também está em curso, algo que o CEO considera uma questão de saúde pública.

Preocupado com o fôlego e a resiliência dos sistemas de saúde, duramente testados na pandemia, Soriot colocou entre as prioridades da AstraZeneca apoiar estudos para entender os pontos fracos e fortes do setor em uma série de países. Os resultados para o Brasil já foram anunciados.

Entre as soluções para o cenário nacional, o líder da companhia prescreve investir mais em diagnóstico precoce. “Se você for diagnosticado precocemente, tem mais chances de ser curado. E ser curado é bom para o indivíduo, mas também para todo o sistema”, afirma.

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Em entrevista exclusiva a VEJA, concedida por videoconferência, Pascal Soriot fala dos desafios atuais, indissociáveis da crise climática, e do que o futuro da medicina nos reserva no combate a infecções, câncer e doenças cardiovasculares.

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Vacina contra o coronavírus: fórmula de Oxford e da AstraZeneca, que resultou em parceria com a Fiocruz, salvou mais de 6 milhões de pessoas, calculam cientistas (Foto: Andre Coelho/Reprodução)

Sabemos que a AstraZeneca foi uma das protagonistas na reação à Covid-19 ao atuar no desenvolvimento e na disponibilização de uma das vacinas contra a doença. Essa experiência foi um divisor de águas para vocês?

Nós aprendemos muito durante o período da Covid-19. Em primeiro lugar, ficamos muito felizes e orgulhosos de ter ajudado tantos países. Cientistas independentes estimam que a nossa vacina salvou 6,5 milhões de vidas pelo mundo. Nós entregamos para as pessoas cerca de 3 bilhões de doses. Acima de tudo, aprendemos bastante sobre imunizantes e sobre imunoterapias. E já estamos trabalhando em novas tecnologias que, assim esperamos, devem oferecer vacinas inovadoras e novos tratamentos não só para a Covid, mas também para outros vírus e, possivelmente, até bactérias.

O senhor tem formação como médico veterinário e cada vez mais se fala da importância de tratarmos a saúde humana, a dos animais e a do planeta como uma coisa só. Como enxerga essa intersecção?

Sim, ótima questão. Quando eu era jovem, amava matemática e física, mas também biologia. Minha mãe tentou me convencer a ser médico. Ela convenceu meus irmãos, não a mim. Eu amava a natureza, amava especialmente cavalos, e decidi ser veterinário. Quando terminei a graduação, ainda não sabia muito o que fazer. Com o tempo, comecei a trabalhar na indústria, mas mantive minha paixão pela natureza e a compreensão de que a natureza e a saúde humana andam de mãos dadas.

Nós não podemos viver sem o planeta. E a verdade é que fizemos grandes progressos como seres humanos nos últimos 200 anos, mas gerando um impacto negativo sobre o planeta. Então é preciso compreender que a atual crise climática é também uma crise de saúde. A Covid matou cerca de 7 milhões de pessoas. Mas os cidadãos não percebem que as mudanças climáticas e a poluição já matam ao redor de 7 e 9 milhões de pessoas todo ano através de doenças cardiovasculares e respiratórias. Então precisamos entender que essa é também uma crise de saúde.

Na prática, como podemos mudar essa realidade?

Assim como nós precisamos fazer nossa parte como companhia, eu espero que todo mundo tenha esse mesmo compromisso de salvar o planeta. E ele começa com a redução das nossas emissões de carbono. Estamos engajados em grandes programas nesse sentido e trabalhando com outras empresas, não só do nosso setor, para tentar reduzir coletivamente as emissões na área da saúde, que geram ao redor de 5% das emissões de carbono globalmente.

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Nós já estamos diminuindo nossas emissões e queremos chegar a uma redução de 95% em 2025, mobilizando também nossos fornecedores, e pretendemos zerar as emissões por volta de 2045. Em paralelo, também queremos construir maneiras de absorver o carbono que ainda estamos emitindo. E essa é a base do programa AZ Forest. Decidimos investir 400 milhões de dólares para plantar 200 milhões de árvores pelo mundo, que absorverão 30 milhões de toneladas de carbono ao longo do projeto. No Brasil, nos comprometemos a plantar 12 milhões de árvores na Mata Atlântica, junto a uma parceria com o estado de São Paulo.

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Corredores verdes de ar previstos pelo projeto AZ Forest (Foto: Instituto Ipê/Reprodução)

Por falar em sustentabilidade… E a sustentabilidade econômica do sistema de saúde? Vocês apoiaram uma pesquisa realizada em vários países para avaliar os sistemas de saúde locais, incluindo o brasileiro. A que conclusões chegaram?

Bem, se olharmos um pouco para atrás, a Covid nos mostrou claramente que a resiliência dos sistemas de saúde é a chave. Quando os sistemas de saúde pelo mundo passaram a ficar sobrecarregados com pacientes de Covid, vimos que a vida entra em colapso, e, no final, só restava aos governos promover lockdowns para evitar que a doença se espalhasse a fim de evitar a pressão sobre os hospitais. Então, ter um bom sistema de saúde é algo crítico, e isso, eu espero, se tornou uma prioridade no pós-Covid.

No fim das contas, precisamos de um sistema que possa absorver a demanda das pessoas. Para isso, é fundamental que façamos diagnósticos mais cedo. Um exemplo: se você tiver câncer de pulmão e for diagnosticado precocemente, pode ser curado. E, se você é curado, isso é melhor para você, mas também para o sistema, porque você não ficará um longo período hospitalizado. Se você tiver doença renal e for diagnosticado cedo, também pode ser tratado antes e não ter de depender de um centro de diálise. Então eu acredito que o diagnóstico e a interceptação precoces de doenças é crítico para o Brasil e o restante do mundo.

A preocupação com a sustentabilidade financeira na área da saúde também se cruza com a ambiental?

Sim, há uma segunda parte nessa história, que é a de tentar restaurar o ambiente e a qualidade do ar que as pessoas respiram. Há estudos recentes, publicados em revistas científicas como a Nature, que mostram claramente que partículas finas presentes no ar estão aumentando o risco de câncer de pulmão, doenças respiratórias e cardíacas, infecções… Então, quanto mais assegurarmos uma boa qualidade do ar, especialmente em grandes cidades, melhor. Eu realmente acredito que mitigar o impacto das mudanças climáticas e diagnosticar doenças mais cedo são as melhores avenidas para resguardar o sistema de saúde.

Pode nos contar os planos de vocês envolvendo novas vacinas?

Estamos de olho em um grande número de vírus, buscando soluções para Covid, mas também para outras infecções como gripe e vírus sincicial respiratório (VRS). E estamos trabalhando também com vacinas para bactérias. Hoje existem poucas vacinas voltadas a bactérias, então, se a nossa nova tecnologia funcionar, trará um grande reforço.

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A outra coisa que estamos desenvolvendo é anticorpos para infecções virais como Covid, gripe e VSR. Acabamos de lançar, numa parceria com a Sanofi, um produto desses para bebês. Bebês são acometidos com frequência pelo vírus sincicial respiratório, que pode ser fatal. Então criamos um anticorpo que, por meio de uma única aplicação, protege o bebê por seis meses.

Também estamos trabalhando com anticorpos para infecções bacterianas. Como se sabe, o problema com as bactérias é que os antibióticos costumam ficar menos efetivos à medida que elas se tornam resistentes a eles. Então hoje temos um grande número de infecções que não respondem mais aos agentes antibacterianos clássicos, os antibióticos.

Esperamos que esses novos anticorpos nos ajudem a atender à necessidade de pacientes que não podem ou não deveriam ser tratados com antibióticos. Ainda vão alguns anos até que esses esforços sejam frutíferos, mas certamente teremos novas tecnologias para conter tanto vírus como bactérias.

Bronquiolite: quadro causado pelo vírus sincicial respiratório pode ser grave entre bebês.
Bronquiolite: quadro causado pelo vírus sincicial respiratório pode ser grave em bebês (Ondrooo/iStock/Getty Images)

Outra demanda prioritária é o combate ao câncer. O que vocês projetam para o tratamento da doença?

Antes de eu falar sobre medicamentos para o câncer, é importante abordar o diagnóstico precoce da doença. Hoje, em diversos países, estamos trabalhando com os governos para introduzir políticas que promovam o diagnóstico da doença mais cedo. Como eu disse, se você for diagnosticado com câncer de pulmão em estágio inicial, a chance de estar vivo em cinco anos é de 90%. No entanto, se for diagnosticado com a doença avançada e metastática, a chance de estar vivo em cinco anos é de 10 a 15%. Mesmo utilizando as medicações mais inovadoras. Talvez, com a imunoterapia, essa chance de sobrevivência chegue a uns 20%, mas apenas 20%.

Então, precisamos implementar e aprimorar junto aos governos programas de rastreamento para diagnóstico precoce. E hoje existem novas tecnologias que nos permitem isso, assim como no futuro poderemos detectar tumores precocemente com apenas uma amostra de um exame de sangue. Estamos atuando junto a outras empresas para desenvolver testes nessa direção.

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Essa é uma parte. A outra, claro, é a do tratamento em si, e hoje temos todo um escopo de novas tecnologias, como os anticorpos conjugados à droga. São produtos que trazem um anticorpo que, ao atracar na célula cancerosa, entregam no local uma substância tóxica a essa célula. Estamos desenvolvendo, ainda, pequenas moléculas para uma variedade de tumores. E uma nova linha de imunoterápicos para melhorar a ação da primeira geração desses medicamentos.

Outra vertente é a terapia celular. Estamos falando não só da terapia CAR-T, que é utilizada uma única vez para aquele paciente: você retira células de defesa dele, as altera via engenharia genética e as reinjeta. Essa é uma abordagem eficiente para cânceres hematológicos, mas complexa e cara. Então estamos investindo numa tecnologia promissora, com uma terapia celular pronta para uso. Algo mais fácil de usar e mais barato. E que possa ir além da hematologia e ser utilizada também em tumores sólidos.

O fato é que temos um dos melhores portfólios para o tratamento do câncer na indústria farmacêutica hoje. E acredito que, nos próximos cinco ou seis anos, seremos a companhia número 1 do mundo em oncologia.

Entre tantos desafios à vista, não podemos deixar de mencionar as doenças cardiovasculares. O que vocês planejam nessa seara?

Sim, estamos falando daquelas que, de fato, são a principal causa de morte no mundo. E é importante ter um olhar sobre isso em países como o Brasil e o México, porque já estamos cientes de que, nesses locais, as pessoas tendem a desenvolver resistência à insulina, síndrome metabólica e hipertensão [fatores de risco cardíaco] mais rapidamente.

Então estamos trabalhando hoje em um novo agente anti-hipertensivo, porque sabemos que muitas pessoas com hipertensão acham que estão com a pressão controlada, mas não estão, mesmo usando os remédios disponíveis. Também temos uma frente de novos produtos para cardiomiopatia, um tipo de insuficiência cardíaca que se acreditava ser rara, mas que vemos se tratar de algo muito mais frequente do que se pensava. Nesse caso, a doença é resultado do aumento de uma proteína que se deposita no coração, e os medicamentos em desenvolvimento buscam parar a produção delas ou aumentar sua eliminação pelo corpo, evitando que enfraqueçam o músculo cardíaco.

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Por fim, também trabalhamos em um novo tipo de terapia celular, uma terapia regenerativa, que basicamente nos ajudaria a reconstruir o músculo cardíaco. Fizemos estudos em animais, que mostraram resultados muito promissores, e estamos agora na etapa inicial de estudos em humanos. Então podemos imaginar que, no futuro, teremos injeções que ajudarão a regenerar o coração de pessoas que tiveram um infarto e ficaram com uma cicatriz no músculo cardíaco. E o próximo passo é criar uma terapia regenerativa também para as células do rim.

Making CAR T cells. The name of the cell processing specialist that was working in the bio-safety cabinet is Dipti Sahoo. Photo by Sam Ogden Credito: Cortesia Dana-Farber Cancer Institute
Terapia celular: laboratório investe em pesquisas na área para câncer e doenças cardíacas. (Foto: Dana-Farber Cancer Institute/Divulgação)

Essas terapias são baseadas em células-tronco?

Sim, em um tipo específico de célula-tronco, identificado por pesquisadores de Boston, nos EUA, e do Instituto Karolinska, na Suécia. Isso é muito interessante, porque não basta colocar quaisquer células-tronco no coração. Elas podem se multiplicar em várias direções e desembocar numa espécie de câncer no músculo cardíaco. Mas as células com as quais trabalhamos sabem o que fazer. Elas vão para o lugar certo e reconstroem o coração do jeito certo. É fascinante.

Por falar nisso, dentro do portfólio ou do pipeline da AstraZeneca, o que mais orgulha o senhor?

É uma boa pergunta, e difícil de responder porque é como ter de escolher o favorito entre seus filhos. Temos tantos produtos, tanta coisa empolgante. Porque, no final do dia, eu sempre digo aos colegas da companhia que precisamos ajudar pessoas, endereçar as necessidades delas. E, às vezes, uma simples mudança em um produto já existente representa um grande avanço para os pacientes.

Para quem trabalha com ciência de ponta, como enxerga essa onda recente de negacionismo científico?

Sim, essa é uma questão que, infelizmente, não ocorre só no Brasil. O problema é que, muitas vezes, a ciência é sequestrada por interesses políticos. Mas o que precisamos ter em mente é que, no final, a raça humana enfrenta vários desafios, doenças, mudanças climáticas, entre outros, e a ciência é a única forma de encontrar soluções para eles.

Então precisamos continuar educando profissionais de saúde e pacientes sobre o valor da ciência e sobre o benefício que trazemos ao desenvolver novos produtos. A ciência é o que realmente vai nos salvar do aquecimento global, se pudermos ou se quisermos ser salvos. É o mesmo raciocínio que aplicamos às doenças.

Há 25 anos, para tratar o câncer, só havia quimioterapia disponível. Ela não era tão efetiva e cheia de efeitos colaterais. Hoje temos tantas opções, e a coisa só acelera. Então me orgulha acreditar na ciência e trabalhar pela ciência. Eu e nossos colaboradores acreditamos nisso e tentamos transmitir esse entusiasmo a outras pessoas e aos governos tanto quanto podemos.

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