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“A pílula mereceria o Nobel da Paz”, diz Carl Djerassi

O químico, romancista e dramaturgo austríaco Carl Djerassi é considerado um dos descobridores da pílula anticoncepcional

Por Da Redação
22 out 2011, 15h52

O século XX foi o século da contracepção, o século XXI será o da concepção

Considerado um dos descobridores da pílula anticoncepcional, o químico, romancista e dramaturgo austríaco Carl Djerassi concedeu essa entrevista a VEJA há quase uma década. Nela, fala sobre a temporada em que trabalhou no México, o livro Dilema de Cantor, e a repercussão que sua invenção teve na década de 1960. “Algumas feministas disseram que a pílula era mais uma criação masculina destinada a controlar sua vida e seus corpos”, diverte-se com a lembrança. Confira os melhores momentos da conversa.

Como foi o processo de descoberta da pílula anticoncepcional? Todo ele aconteceu entre os anos de 1950 e 1951, no México. Tecnicamente, o que fizemos foi desenvolver uma substância que podia ser administrada oralmente e tinha estrutura e função semelhantes à da progesterona, que é o “contraceptivo da natureza”, ou seja, o hormônio que inibe a ovulação nas mulheres. Demos a essa substância o nome de “noretindrona”. A possibilidade de uso oral foi o que fez a diferença pois, há vários anos, os médicos já conheciam as funções biológicas da progesterona, embora só tivessem uso para ela em injeções, sobretudo no tratamento de problemas menstruais. Acho importante especificar, além disso, que se eu e minha equipe sintetizamos o hormônio, coube a um grupo de biólogos comandado pelo cientista Gregory Pincus fazer os testes necessários com mulheres, para que se chegasse à pílula propriamente dita. De modo que se disserem que eu sou o pai da pílula, terão de reconhecer que Pincus foi a mãe. Ou vice-versa.

Por que tudo isso aconteceu no México? É uma boa pergunta, já que na década de 50 costumava-se dizer que toda pesquisa séria na área de química terminava na fronteira dos Estados Unidos. O restante das Américas era visto como um deserto. Mas essa era uma imagem falsa. Na década de 40, por causa da perseguição nazista, muitos químicos europeus haviam imigrado para países da América Central e Latina e começavam a formar grupos respeitáveis de pesquisa. Foi para encontrar um desses cientistas, George Rosenkranz, que eu viajei para o México. Ele era diretor técnico de uma empresa farmaceutica minúscula àquela época, a Syntex, que, no entanto, oferecia condições maravilhosas de trabalho para um pesquisador. Tanto é assim que conseguimos patentear o princípio da pílula antes dos famosos laborátorios Searle, que trabalhavam na mesma direção. Em pouco tempo a Syntex firmou sua reputação mundialmente e tornou-se uma grande empresa, da qual cheguei a ser presidente. Incidentalmente, gostaria de notar que a pesquisa química também cresceu muito no Brasil a partir dos anos 50. Eu mesmo participei de uma iniciativa conjunta de pesquisa Estados Unidos-Brasil por quase duas décadas. Desliguei-me do projeto nos anos 70, quando o Brasil votou a favor de uma célebre resolução das Nações Unidas que igualava o sionismo com racismo. Nenhum cientista brasileiro se manifestou contra essa atitude, ainda que a ciência brasileira houvesse se beneficiado muito com o conhecimento trazido por cientistas judeus que haviam fugido de Hitler. Na época, essa situação me pareceu inaceitável.

O senhor estava consciente das implicações sociais que a pílula teria quando iniciou seu trabalho? Mentiria se dissesse que sim. Comecei a ficar alerta para essas questões na década de 60 e desde então meu envolvimento com elas só aumentou, já que me tornei um químico interessado por todas as ramificações sociais e culturais da ciência. Acho que o primeiro choque sobre a minha consciência ocorreu quando algumas feministas reagiram contra a pílula. Aquilo era inesperado. Algumas disseram que a pílula era mais uma invenção masculina destinada a controlar sua vida e seus corpos. Quando souberam que os testes biológicos do medicamento tinham sido conduzido em mulheres – e, infelizmente, essa era a única maneira de saber se a pílula funcionaria de fato -, os sentimentos negativos ficaram ainda mais exacerbados. Entendo o que aconteceu, mas acho que o argumento era equivocado: o que merecia crítica era a ausência quase completa de mulheres em vários setores da ciência e da medicina, algo que, aliás, não mudou tanto assim. Acho que hoje ninguém questiona que a pílula de maior liberdade às mulheres. Muito me perguntam também sobre o papel da pílula na revolução sexual dos anos 60 e 70. Só posso dizer que as mudanças ocorreriam de qualquer jeito. A pílula talvez tenha acelerado as coisas e eu não lamento por isso.

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O livro Dilema de Cantor fala das disputas de bastidor pelo Prêmio Nobel, da vaidade e das ambições dos cientistas. O senhor acha que a descoberta da pílula merecia um Nobel? Nem todos dirão isso em público, mas o reconhecimento é o que alimenta – e às vezes envenena – o ego de um cientista. Em minha carreira de químico eu fiz descobertas importantes. Algumas talvez merecessem um Nobel, mas não creio que a pílula esteja entre elas. Não foi um trabalho assim tão complicado do ponto de vista técnico. Aliás, a única vez em que o campo de medicina reprodutiva recebeu um Nobel foi nos anos 30. Agora, se você me perguntasse se a pílula seria merecedora do Nobel da Paz em pensaria duas vezes. É algo a se discutir.

Num artigo recente da revista Scientific American o senhor diz que, se o século 20 foi o século da contracepção, o século 21 vai ser o da concepção. Poderia comentar? No século 20, o controle da natalidade era uma grande preocupação. As técnicas que permitiam esse controle hoje estão disponíveis. E quando falamos em “controle”, devemos pensar de maneira ampla: é possível tanto limitar quanto ampliar a capacidade reprodutora hoje em dia. A idade limite para que uma mulher possa ter filhos aumentou bastante, por exemplo. Tudo isso muda o foco da discussão. Agora o importante é saber quando e em que circunstâncias uma criança vai ser trazida ao mundo. Pois tornou-se possível separar completamente as funções do sexo e da fertilização. O primeiro ocorre na cama. A segunda vai ocorrer cada vez mais sob o microscópio, como mostram as tendências já observáveis nos países ricos. Isso implica também uma mudança no equilíbrio do poder sexual. Cada vez mais é a mulher quem decide. A importância do conceito de paternidade natural tende a diminuir, pois o esperma, única contribuição do homem para a gravidez, poderá ser obtido em bancos. O papel social do pai, no entanto, vai receber toda a atenção. Tudo isso, é claro, tem profundas implicações, inclusive religiosas. Mas vai ocorrer e os cientistas também deveriam refletir sobre isso.

A invenção da pílula o tornou um homem rico? Não diretamente. Embora o meu nome seja o primeiro na lista de inventores do registro de patente, os direitos de exploração couberam ao laboratório. Aliás, embora a patente pessoal seja prevista pela legislação, mesmo quando a pesquisa é feita com recursos de fundações e universidades, eu nunca optei por essa alternativa. O dinheiro que ganhei foi como executivo de empresas farmaceuticas, entre elas a Syntex. Quanto ao uso que dei a esse dinheiro, ele nunca foi voltado para a área científica e sim para a área artística. Por muito tempo fui um colecionador de arte moderna, de artistas como Picasso, Giacommetti ou Degas. Mas quando minha filha, que era pintora, se suicidou, eu vendi toda a coleção e criei uma fundação em São Francisco dedicada a receber criadores de várias partes do mundo. No ano passado recebemos nosso milésimo bolsista. A única coleção que ainda continuo é a do pintor Paul Klee, meu favorito. O acervo fica exposto numa ala especial do Museu de Arte Moderna de São Francisco.

O senhor é colecionador de arte, escreve romances e peças que lidam com temas científicos. Seus colegas não olham com desconfiança essas atividades? Há um preconceito absurdo entre os cientistas. Costumo dizer que eles são intelectualmente monogâmicos. De minha parte, prefiro a poligamia – e sempre que vou entrevistar estudantes procuro saber quais são seus interesses fora da bitola do laboratório. Minha grande ambição é construir pontes entre as várias culturas – a cultura científica, a humanística, e até a pop. A última cruzada em que embarquei foi convencer a tradicionalíssima revista The New Scientist, que jamais havia publicado um texto em forma de diálogo, a reproduzir um trecho de minha nova peça, que fala sobre novas técnicas de reprodução humana. Foi duro, mas consegui. Como passei a me interessar por arte e literatura quando já tinha uma reputação científica firmada, acho que fiquei imune a certos tipos de censura e boicote. Nem todos tiveram essa sorte. Uma vítima famosa do preconceito foi o físico Carl Sagan, que até o fim da vida recebeu críticas pesadas da comunidade e foi visto como um diluidor. Recusaram-se, por exemplo, a elegê-lo para a Academia Americana de Ciência.

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