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Vergonha brasileira

É assustador o abismo entre brancos e negros, cuja situação teve melhora significativa em um único aspecto em décadas: o acesso à universidade

Por Luisa Bustamante, Maria Clara Vieira Atualizado em 10 dez 2018, 10h06 - Publicado em 17 nov 2017, 06h00
(//VEJA)

O Brasil é mais preto que branco. De acordo com o mais recente censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a maioria da população — exatos 54% — declara-se preta ou parda, as denominações dadas aos afrodescendentes, o que faz do país o segundo mais negro, atrás apenas da Nigéria. Em um mundo justíssimo, a proporção de negros no Brasil se refletiria nas escolas, nos salários, nos empregos, na política. Dá-se o contrário: para qualquer indicador que se olhe, os negros estão invariavelmente em pior situação que os brancos. A justificativa automática, na ponta da língua, é que isso acontece porque são pobres. Mas não. Acontece porque são negros. Por trás do atraso ditado pela cor da pele está a força de um preconceito tão enraizado quanto enrustido. Ao contrário do que ocorre nos Estados Unidos, o outro grande país de passado escravagista, o racismo à brasileira não tem história e não tem clareza. Escorados em séculos de omissão, distorções e celebração da “nação tolerante”, os brasileiros persistem em pintar o cenário da desigualdade nacional como uma divisão entre ricos e pobres, sem levar em conta que os negros são, e sempre foram, mais desiguais que os outros.

Rio de Janeiro, 2005 (Walter Firmo/Imã Fotogaleria/)

Os números estampados nesta reportagem — mais de uma dezena de indicadores socioeconômicos compilados por VEJA — escancaram essa desigualdade escamoteada, seja ela em qualidade de vida, seja em perspectiva de futuro, seja no exercício da cidadania. Em sua versão mais abrangente, a medida do abismo se faz nítida no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), um indicador internacional que pontua de 0 a 1 o bem-estar das populações. Em 2000, no Brasil, pretos e pardos cravavam 0,531 e brancos, 0,675. Dez anos depois, pretos e pardos haviam chegado ao nível dos brancos lá atrás: 0,679 (o índice de Tonga), contra 0,777 dos brancos (o da Argentina).

Examinada ponto a ponto, a desvantagem pela cor é ao mesmo tempo triste, pela desigualdade que alimenta; vergonhosa, pela inação que a acompanha; e prejudicial, pelo impacto econômico. A renda de pretos e pardos é metade da dos brancos, tanto hoje quanto há dez anos. Um olhar sobre os 10% mais ricos do Brasil encontra 70% de brancos; voltando os olhos para baixo, para os 10% mais pobres, 74% são negros — um fator que, além de injusto, emperra o progresso. “O acesso desigual a oportunidades é sinal de que o país não está usando um de seus mais valiosos recursos — as pessoas — da maneira mais produtiva”, alerta o Nobel de Economia Joseph Stiglitz, grande estudioso do assunto. “Diminuir a diferença não apenas promove justiça social como impulsiona o crescimento econômico.” A ilusão que põe negros e brancos pobres no mesmo saco, como se aqui não houvesse uma barreira racial, cai de vez por terra quando se analisa a incidência de mazelas comuns à população de baixa renda. No cálculo da mortalidade infantil, o risco de o filho de uma negra ou parda morrer antes de completar 1 ano é 30% maior que o do filho de uma branca. Na dureza do cotidiano de quem vive em casebres, 22% de pretos e pardos ainda não têm nem banheiro nem água encanada; entre os brancos, são 8%.

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A visão distorcida sobre o peso da cor da pele no Brasil se formou, inicialmente, nos quase quatro séculos de escravidão, depois no conjunto de atitudes que sucederam a sua abolição e, por fim, na falta de vontade geral de tirar o racismo da sombra. Aí reside o grande contraste entre a situação do Brasil e a dos Estados Unidos. Os negros e os brancos americanos praticamente não se misturaram, e lá o racismo se tornou uma chaga exposta. Nas mais de 300 páginas do premiado romance O Vendido, uma sátira cortante sobre o que é ser afro-americano, o escritor Paul Beatty escracha sem dó a enxurrada de clichês, termos pejorativos, gestos de repulsa e olhares enviesados presentes numa sociedade em que o racismo salta aos olhos. Se escrevesse aqui, Beatty teria dificuldade em achar material de trabalho — não por falta de preconceito, mas por sua negação.

Quando a princesa Isabel assinou a Lei Áurea, em 1888, só 5% dos negros no Brasil eram escravos. Os demais, libertos por um punhado de atos anteriores, viviam abandonados à própria sorte, muitas vezes isolados em quilombos. Enquanto dava as costas aos ex-escravos, o governo tratava de atrair para a lavoura imigrantes europeus — igualmente iletrados e destituídos, porém brancos. Um decreto de junho de 1890, dois anos depois da abolição, lhes oferecia terras e ajuda na viagem, benefícios negados aos indivíduos da África e da Ásia. “Esperava-se que os negros, que viviam à margem da sociedade e eram vistos como entrave ao desenvolvimento, se misturassem e a população embranquecesse”, diz o sociólogo Amauri Mendes, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.

Sob o véu da tolerância racial e da condescendência institucional, a maioria dos negros permaneceu onde estava — no pé da pirâmide. Nessa posição vulnerável, eles se tornaram, como era de prever, a fatia da população mais afetada pela violência. A cada 100 000 homicídios entre jovens, trinta mortos são brancos e 82, pretos e pardos. Nas cadeias, a taxa está em 67% — e subindo. Isso não quer dizer, necessariamente, que eles pratiquem mais crimes. São, isto sim, muito mais visados. “A população carcerária é um retrato de quem é pego pela polícia. Os negros são mais abordados e, quando presos, raramente podem pagar pela defesa”, afirma a socióloga Jacqueline Sinhoretto, especialista em segurança pública e relações raciais da Universidade Federal de São Carlos. O processo de criminalização do negro tem raízes históricas. A polícia brasileira nasceu no período colonial com o objetivo de coibir revoltas de escravos e punir os fugitivos. “Firmou-se aí a visão do negro mau, primitivo e violento”, explica Amauri Mendes. Desse olhar eivado de preconceito resultou que “a carne mais barata do mercado é a carne negra / que vai de graça para o presídio / e para debaixo do plástico”, como canta Seu Jorge na pungente A Carne.

A discriminação racial só entrou no rol das políticas públicas do Brasil no século XXI, com cinquenta anos de atraso em relação ao movimento civil e às ações afirmativas que derrubaram a segregação e firmaram direitos nos Estados Unidos (leia mais). Essa conta da defasagem descarta a Lei Afonso Arinos, de 1951, que foi o primeiro instrumento jurídico do país contra o racismo, mas ela era tão vaga e tão branda que, simplesmente, “não pegou”. Assim, a real ponta de lança legal contra o preconceito veio a ser a rigorosa Lei do Racismo, de 1989, que faz do racismo um crime inafiançável e imprescritível. Na prática, o mais comum é que as queixas se enquadrem no crime de injúria racial, previsto no Código Penal, que fixa penas mais brandas. De qualquer forma, a legislação racial no mínimo arranhou o estado de cegueira vigente. Em São Paulo, em 2017, as delegacias registraram 1 210 boletins de ocorrência com acusações de racismo; do total de queixas por intolerância (que inclui todo tipo de preconceito), elas representam a maior fatia, 25%.

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Houve também um certo avanço contra o racismo brasileiro a partir do início dos anos 2000, quando as primeiras universidades instituíram o sistema de cotas para negros. Atualmente, pretos e pardos representam 27% das matrículas em curso superior. Pouco, é claro, mas antes das cotas eram menos ainda, apenas 8%. O impulso contra a discriminação ganha com isso, na medida em que o ambiente acadêmico contribui para aprofundar a consciência do problema como um todo. Diretora da Anistia Internacional no Brasil, Jurema Werneck observa: “A quantidade de brancos que reconhecem o racismo é hoje muito maior”.

Por mais que ajudem, as políticas de inclusão pouco efeito têm na hora de preencher as vagas de emprego. Uma pesquisa realizada pelo Instituto Ethos que avalia o perfil das pessoas contratadas pelas 500 maiores empresas do país revelou que apenas 34% dos funcionários são pretos e pardos (lembrando: eles são 54% da população). Um estudo da Fundação Seade em parceria com o Dieese, feito na região metropolitana de São Paulo, mostrou que negros com ensino superior completo recebem 65% do obtido por brancos em igual condição. Quando se comparam os dois grupos apenas entre os que chegaram somente até o ensino médio, o descompasso é mínimo. “A grande barreira está no processo de ascensão. Isso se deve a um racismo até inconsciente, sobretudo entre as gerações mais velhas”, avalia o presidente do Instituto Ethos, Caio Magri. Os dados coletados desembocam em uma projeção lastimável: se tudo continuar como está, a proporção racial equivalente à da população no quadro de funcionários das grandes empresas só será realidade daqui a 150 anos. O Brasil não pode esperar tanto tempo.

Publicado em VEJA de 22 de novembro de 2017, edição nº 2557

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