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Uma história de perdas e ganhos

Desde que surgiu, há 3 000 anos, até sua atual encarnação, em que assume a forma de sinais de luz, o dinheiro vem forjando instituições e modos de vida

Por Jack Weatherford*
Atualizado em 10 ago 2018, 07h00 - Publicado em 10 ago 2018, 07h00

O fogo, a roda, a religião, a escrita, o dinheiro. Esses são os cinco elementos da civilização. O dinheiro é a mais recente dessas inovações revolucionárias. Portanto, é a menos estável, a menos compreendida e a mais difícil de controlar. Desde sua primeira aparição na história, ele vem forjando novas instituições e modos de vida, corroendo os sistemas anteriores. Tornou-se a variável definidora não apenas do comércio, mas de todos os tipos de relações, das religiosas e políticas às sexuais e familiares. Cada inovação tecnológica — da invenção do sistema monetário na Lídia, há 3 000 anos, até sua atual encarnação como sinais de luz — expande mais seu papel em nossa vida.

Como tudo o que é importante, o dinheiro é difícil de definir. No nível mais básico, ele é aquilo que usamos para comprar coisas, o que os economistas classificam como um meio de troca. Se não pode ser utilizado para comprar, então não é dinheiro. Ao longo de milhares de anos, vários artigos serviram como protomoeda: búzios, sal (de onde vem a palavra salário), tabaco, grãos de cacau, pepitas de metal, contas de vidro, bolas de fios, unhas, pele de cervo, penas, pontas de seta, mantas de lã e cabeças de gado (de onde vem a palavra pecúlio). Essas commodities operavam em um mercado relativamente livre, já que as pessoas tinham fácil acesso aos materiais; assim, qualquer um podia fazer dinheiro cultivando, encontrando ou produzindo a própria moeda.

Apesar das limitações das protomoedas, muitos impérios da história foram erguidos com base nelas. Grandes impérios, como o antigo Egito, a Pérsia e a Mesopotâmia, e impérios mais recentes, como o Khmer no Camboja e o Inca no Peru, foram criados usando nada além de protomoedas.

 

A ERA DO OURO

A confiança na protomoeda mudou por volta do ano 650 antes da era cristã, quando os reis mercadores da Lídia começaram a usar pepitas de ouro e de prata, ou um peso determinado delas, para padronizar o comércio. A fim de marcarem a pureza do metal, imprimiam um selo sobre a superfície das pepitas, achatando-as e produzindo as primeiras moedas. A novidade não apenas tornou mais fácil o comércio como também facilitou a tributação, deixando-a mais eficiente para o rei. Altamente convenientes para a maioria das transações, essas moedas também significavam que as pessoas não poderiam mais fazer o próprio dinheiro porque o Estado havia criado um monopólio sobre sua produção e sua gestão.

Com essa inovação comercial, a Lídia se tornou o país mais rico do mundo, ou, mais precisamente, seu rei se tornou o homem mais rico do mundo, já que era ele quem controlava o dinheiro. O rei Creso foi, durante 2 000 anos, sinônimo de grande riqueza. Sua fortuna também despertou inveja, e ele foi rapidamente dominado pelos persas, que confiscaram o que Creso possuía e anexaram seu reino.

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Essa pequena centelha da Lídia logo se tornou parte definidora da vida, e Roma foi o primeiro império baseado no dinheiro, que funcionava como o principal mecanismo para tributos, comércio, governo, exército e até templos. E os imperadores o controlavam. Questionado sobre a justeza de pagar tributos ao imperador romano, Jesus concedeu que o dinheiro era uma questão de Estado, não de religião. “Dê a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus” (Mateus 22:21).

O monopólio governamental de emitir dinheiro deu ao Estado mais poder sobre o comércio e a economia. O rei mantinha o poder com esse monopólio, porém o poder de regular é o mesmo de destruir. Os imperadores romanos rapidamente passaram a abusar do recém-adquirido e quase mágico poder de criar dinheiro e riqueza. A começar por Nero, eles sub-repticiamente substituíram 10% da prata por metais mais baratos. As pessoas não eram cegas à mudança — e, como os imperadores seguintes continuaram a diminuir o conteúdo de prata, as moedas perderam o valor. Com o colapso de sua moeda, o império romano também caiu, resultando na Idade das Trevas, que duraria 1 000 anos, do século V ao XV. Nesse período, o mundo voltou para o escambo, para o privilégio feudal, sem praticamente nenhum sistema monetário em funcionamento, à exceção do papel altamente limitado para um pequeno fornecimento de moedas sobreviventes.

 

A ERA DO PAPEL

Na ausência de uma moeda confiável, mercadores, sobretudo italianos, inovaram usando métodos contábeis para registrar compras e dívidas no papel. Receitas, recibos, empréstimos e outros instrumentos financeiros formavam uma miríade de instrumentos de papel para substituir a moeda que desaparecera. Mais uma vez eram as pessoas, e não o Estado, que produziam o próprio dinheiro. O governo e a Igreja, que haviam proibido algumas práticas, como a usura, mostraram-se incapazes de controlar eficazmente essas transações altamente personalizadas e difíceis de rastrear e taxar. Mais fluidas que seu predecessor metálico, as transações de papel apressaram o fim do feudalismo, eliminaram os privilégios de hereditariedade e transferiram o poder econômico da posse de terras para a posse de instrumentos de papel: ações, títulos, hipotecas e sociedades.

Governos e políticos costumam demorar a entender as inovações comerciais ou econômicas, no entanto estão sempre ávidos por expandir seu domínio. A inspiração sobre a forma de controlar a massa de papéis comerciais veio do governante mongol da China Kublai Khan (1215-1294), cujos métodos para manter o controle total sobre o papel-moeda foram transmitidos por Marco Polo. Os monarcas europeus daquela época, entretanto, careciam de poder centralizado para fazer o que Khan havia feito. Todavia, como parte de seu acúmulo gradual de poder, incluiriam experimentos ainda mais ousados com o papel-moeda.

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A revolução do papel-moeda dos séculos XVIII e XIX financiou a industrialização e criou o capitalismo, mais eficaz e produtivo que o feudalismo ou que o império romano baseado na velha moeda. Contudo, no século XX, principalmente depois da I Guerra Mundial, começou-se a abusar do poder. Impressoras estatais passaram a expelir mais dinheiro do que os recursos que havia em ouro ou prata. Por fim, para financiar a guerra americana no Vietnã, o presidente Richard Nixon (1913-1994) anunciou o fim do padrão-ouro para o dólar, permitindo ao governo dos Estados Unidos imprimir quanto dinheiro quisesse, sempre que quisesse. Os outros países seguiram o exemplo, e a moeda passou a basear-se apenas no poder do governo que a emitia. A transformação pode ser vista nitidamente na inscrição do dólar americano no século XX. Originalmente, ele trazia a expressão “pagável em ouro”, que mudou para “certificado em prata”, e agora diz, apenas, “em Deus confiamos”. O dinheiro é baseado solenemente na confiança, sim, mas no governo americano, não em Deus.

“A novidade não apenas tornou mais fácil o comércio como também facilitou a tributação, deixando-a mais eficiente”

 

A ERA DA ELETRÔNICA

Na economia eletrônica que ainda está surgindo, o poder do dinheiro vai exceder o de qualquer nação, combinação de nações ou organização internacional atual. As recém-ascendidas elites financeiras não detêm causa nem lealdade a nenhum país, e a terceira revolução na história monetária ameaça erodir o valor de parentesco, religião, ocupação e cidadania como componentes definidores da vida civil e social. Tão à mão quanto um cartão de crédito, um telefone ou um computador, a nuvem imprevisível do dinheiro dá a impressão de estar além de nosso controle, como as marés. Uma concentração incorpórea dos desejos, medos e credos mais básicos da humanidade, o dinheiro aparece brevemente como uma sequência de dígitos em uma tela de computador antes de evaporar novamente no ar rarefeito que forma os sonhos.

A criação do telégrafo entre cidades, em 1843, foi o primeiro passo em direção ao dinheiro eletrônico, que se expandiu com a invenção do telefone, do computador, do satélite e da internet. Ele opera na esfera do dinheiro na conta-corrente em vez de na de moedas ou cédulas, e sua transferência é mais fácil e barata se comparada à de dinheiro ou de documentos escritos.

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Dependendo do aprimoramento da tecnologia da comunicação, cartões de crédito, transferências por telefone ou por computador, câmbio, pagamentos automáticos, caixas automáticos e vários cartões de débito aumentaram a velocidade das transações eletrônicas. Não substituíram, porém, o dinheiro antigo que ainda denominava transações em dólares, ienes ou reais. A mídia eletrônica simplesmente tornou a movimentação de dinheiro mais rápida; não criou um novo tipo de dinheiro.

QUEDA - Sede do Banco Central Europeu, em Frankfurt: organizações internacionais perderão força com a economia digital. (Michael Gottschalk/Photohek/Getty Images)

Agora, testemunhamos o primeiro esforço para criar um dinheiro totalmente novo e realmente eletrônico na forma de moeda, que supostamente opera além do controle de governos, corporações ou instituições financeiras. Portanto, fora da esfera de dólares ou reais. Simpatizantes da novidade, descrita como moeda virtual, criptomoeda ou moeda digital, promovem-na como o dinheiro da nova era.

Criptomoeda não é dinheiro. Fracassa no teste básico de ser capaz de comprar coisas ou serviços, não adquirindo praticamente nada de modo legal. Não é aceita como pagamento de dívidas, os bancos não a processam e nenhum governo a recebe na quitação de tributos. Na melhor das hipóteses, as moedas virtuais operam como alternativa de transferência de dinheiro fora do sistema bancário. No entanto, para servirem como dinheiro, elas devem ser trocadas pelas moedas tradicionais. Inovações como bitcoin são empregadas principalmente em lavagem de dinheiro, apostas, pirataria virtual e outras atividades ilegais banidas dos mercados regulares. Seu preço é volátil demais para que sejam usadas como uma reserva de valor. A criptomoeda é fake money amplamente promovido por meio das fake news.

Seus simpatizantes destacam que, mesmo que os negócios e os governos não aceitem a criptomoeda como forma de pagamento, ela ainda é um investimento lucrativo. Bilhões de dólares vêm sendo feitos por meio dela, entretanto outros bilhões também foram perdidos. A criptomoeda é um jogo de computador para os ricos e os crédulos. Os jogadores continuam a investir nesse jogo, como apostadores de olhar turvo diante de caça-níqueis, sabendo que a maioria das pessoas vai perder dinheiro, todavia acreditando que eles próprios serão a exceção.

A vulnerabilidade das criptomoedas está na sua natureza. Bitcoin e outras do tipo são bem mais caras de criar do que a cunhagem de moedas ou a impressão do papel-moeda. Devem ser “mineradas” e mantidas por um suprimento maciço de energia e em expansão geométrica para operar o sistema de computadores que as sustentam. Elas se baseiam no carvão. Baseiam-se em um sistema verdadeiramente arcaico de extração de vastas quantias de carvão em lugares como a Mongólia para gerar a eletricidade que alimenta computadores. A produção da criptomoeda é monitorada por corporações bastante vulneráveis ao controle governamental. O fornecimento de energia usado na manutenção desse tipo de dinheiro eletrônico já excede o de países de porte médio como Dinamarca e Marrocos, e não para de crescer. Sem o apoio corporativo ou governamental, criptomoedas como a bitcoin não têm proteção e já se mostraram perigosamente vulneráveis a intervenção criminosa ou do governo. São presas fáceis para ataques astuciosos de muitos ângulos, mas a plateia da internet que as admira e promove não tem como proteger esses alvos cibernéticos.

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“Criptomoeda não é dinheiro, pois fracassa no teste de comprar coisas. É ‘fake money’ promovido por meio das ‘fake news’”

A criptomoeda em sua configuração presente vai fracassar. Paradoxalmente, o futuro terá algum tipo de moeda eletrônica digital que será totalmente diferente do dinheiro que temos em nossos bolsos e contas bancárias hoje. Algum tipo de dinheiro eletrônico vai acabar dominando o mercado financeiro, mas ninguém sabe que forma terá. Possivelmente, vai operar sob o controle de governos ou de corporações internacionais. E aí reside a próxima luta do mercado e suas instituições contra o governo e sua burocracia.

A história sugere que nem o governo nem o mercado, sozinhos, são capazes de regulamentar o dinheiro. O setor privado parece mais proativo e pronto para implementar novas variedades de moeda, enquanto o governo, por ora, parece mais reativo ao que outros estão fazendo. A disputa para controlar o dinheiro é tão antiga quanto as primeiras moedas lídias, porém cada substancial mudança na forma física do dinheiro tem intensificado o combate. Em um mundo dominado por notícias de terrorismo ou desonestidade de políticos, uma das grandes lutas da história já começou. Estamos diante da nova batalha para controlar o dinheiro do futuro.

* Jack Weatherford é autor de A História do Dinheiro — Do Arenito ao Cyberspace (Campus Elsevier, 1999)

Publicado em VEJA de 15 de agosto de 2018, edição nº 2595

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