Foram dias de aflição e desespero para o presidente Recep Tayyip Erdogan. Em seguidos discursos, ele atacou diretamente o americano Donald Trump, que na sexta 10 avisou que dobraria as tarifas de importação sobre o aço e o alumínio produzidos na Turquia. “Você age, de um lado, como um parceiro estratégico. Mas, por outro, dispara balas no pé do seu parceiro. Estamos juntos na Otan, e então você procura apunhalar o seu parceiro estratégico pelas costas”, esperneou Erdogan na segunda-feira 13. Um dia depois, ele prometeu revidar o golpe americano com a imposição de barreiras protecionistas. “Todos os produtos que compramos em moeda estrangeira vamos produzir aqui e vender no exterior. Vamos impor um boicote aos eletrônicos dos Estados Unidos. Se eles têm iPhones, existe a Samsung do outro lado, e nós temos nosso próprio Vestel aqui”, bradou o turco, que tem o hábito de usar aparelho celular — o seu é produzido pela Apple.
O histrionismo de Erdogan não é apenas uma reação a Trump. É também uma forma de desviar a atenção do fato de que seus problemas não brotaram agora. A lira, moeda local, vem se desvalorizando ao longo do ano. Desde janeiro, perdeu mais de 40% em relação ao dólar. Na semana que se seguiu ao anúncio de Trump, a queda foi de 7%. A inflação deve beirar os 16% em 2018. São números que não nasceram das decisões dos Estados Unidos, e sim dos equívocos na condução da economia turca. “Erdogan está procurando um culpado no exterior, mas isso é como condenar o termômetro por causa da febre”, diz Livio Ribeiro, economista e pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia da FGV, no Rio de Janeiro.
Nos últimos quinze anos, a Turquia viveu um período de prosperidade à custa de investimento público, sobretudo com a construção de estradas, pontes e aeroportos. Essas obras foram feitas com empréstimos obtidos em outros países, majoritariamente europeus. Com isso, a dívida externa cresceu e atualmente equivale a mais da metade do PIB. Para turbinar a economia, o presidente endividou o país brutalmente. Também se recusou a elevar os juros, evitando a forma clássica para conter a inflação. Para ele, juro é uma questão ideológica. “Vou emergir com a vitória na luta contra essa maldição dos juros. Minha crença é que as taxas de juros são a mãe e o pai de todo o mal”, disse ele durante a campanha eleitoral deste ano. Para manter domínio estrito da política econômica, nomeou seu genro, Berat Albayrak, para o cargo de ministro das Finanças e do Tesouro em julho, logo após sua reeleição. “Essa escolha foi um sinal claro de que Erdogan pretende continuar controlando do mesmo jeito a economia”, diz o holandês Erik Jan Zurcher, professor de estudos turcos na Universidade de Leiden. Ao notarem que o país estava no caminho para ficar insolvente, os investidores estrangeiros começaram a abandonar suas operações e a vender suas liras. Com o dólar subindo, a população também correu para as casas de câmbio. Foi então que Erdogan partiu para um nacionalismo econômico que costuma cair em ouvidos moucos. Ele pediu à população que vendesse suas divisas em dólar e as trocassem pela lira. Naturalmente, não funcionou.
O que levou Trump a elevar as tarifas contra as importações da Turquia foi um tema de direitos humanos. Por 21 meses, o pastor americano Andrew Brunson ficou em uma prisão na cidade de Esmirna, no sudoeste da Turquia. Preso sem acusação formal em outubro de 2016, ele foi processado por espionagem e por ter ligações com a organização terrorista PKK, o Partido dos Trabalhadores do Curdistão, e com o movimento Hizmet, liderado pelo clérigo Fetullah Gülen, que vive na Pensilvânia. Uma das evidências contra Brunson, que desde julho cumpre prisão domiciliar e espera seu julgamento, foi uma foto que sua filha lhe mandou de um prato de arroz com carne, o maklube. Segundo as autoridades, o quitute é popular entre os defensores de Gülen. Erdogan não esconde seu ódio contra o clérigo, a quem acusa de ter tramado um golpe em 2016. Em setembro, Erdogan propôs que o pastor fosse trocado por Gülen. Também não deu certo.
A crise turca apareceu em um momento ruim para outros países emergentes, como o Brasil, a África do Sul, a Argentina e a Rússia. Todos já vinham sendo afetados com a saída de investidores, atraídos por juros maiores nos Estados Unidos. Quem sentiu primeiro o tranco foi a Argentina, mais dependente de capital externo. Para conter uma saída ainda maior de dólares, o Banco Central do país subiu os juros para 45%. É a maior taxa do mundo. “O Brasil tem uma dependência menor dos investimentos estrangeiros, e ela vem baixando nos últimos meses. Estamos em uma situação mais favorável”, diz Vinícius Müller, doutor em história econômica e professor do Insper, em São Paulo. Aos olhos dos estrangeiros, mais relevante para o Brasil é saber quem será o próximo presidente e como ele lidará com as contas públicas. Erdogan não serve de exemplo.
Publicado em VEJA de 22 de agosto de 2018, edição nº 2596