Há aí uma deliciosa ironia: a maior ameaça ao presidente Donald Trump neste início de ano veio de um livro que o acusa de ser incapaz de ler mais do que algumas linhas. Fogo e Fúria, de Michael Wolff, um jornalista de fama duvidosa, descreve a Casa Branca como um ambiente caótico em que assessores brigam o tempo todo e onde nada funciona. O pior para Trump nem é a acusação de incompetência — logo ele, que fez sua campanha oferecendo ao país a experiência de um campeão dos negócios. As coisas se complicam em outro front: Wolff sugere que faltam ao presidente faculdades mínimas necessárias ao cargo. Para provar que não está incapaz, Trump abriu aos jornalistas uma reunião com congressistas sobre imigração — e aí a situação desandou. Ficou evidente que ele não domina o tema, apesar de ter sido esse o cerne de sua campanha. E ainda acabou acusado de racismo ao se referir pejorativamente a países pobres.
A reação da sociedade foi vigorosa. E ela é chave para decifrar uma questão que veio à tona com a ascensão do governo que completa seu primeiro ano: a democracia sobreviverá sem arranhões? Vale ouvir dois especialistas da Universidade Harvard, Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, em outro livro recém-lançado, Como as Democracias Morrem. Hoje, raramente os ditadores chegam à frente de tanques. A coisa é mais sutil. O roteiro passa por eleições de populistas que desprezam o complexo sistema de contrapesos das democracias. Hugo Chávez e Nicolás Maduro foram eleitos. Recep Erdogan foi eleito. Vladimir Putin foi eleito. Formalmente, os rituais se cumpriram, pelo menos no início. No entanto, não sobrou nada do sistema que havia ali — e, no caso da Venezuela, o desmanche não é só político, mas total.
O cardápio inclui ainda a visão de que o oponente não é um adversário, e sim um inimigo. A violência política é tolerada, quando não estimulada. O líder busca limitar liberdades civis e o funcionamento da imprensa. Em maior ou menor grau, Trump preenche todos os requisitos, especialmente com sua guerra aberta contra os principais ícones do jornalismo mundial.
É essa guerra que ele — felizmente — parece estar perdendo. Outro cientista político americano de renome, Francis Fukuyama diz que países bem-sucedidos são os que conseguem equilibrar o poder do governo com o da sociedade: o presidente tem força para conduzir suas ações, mas sem sufocar o cidadão. No fim do primeiro ano, Trump aparentemente leva a pior nesse braço de ferro. Até no Partido Republicano há questionamentos — o senador John McCain, candidato derrotado por Barack Obama à Presidência, acaba de publicar no jornal The Washington Post uma dura crítica à campanha de Trump contra o jornalismo.
Há aí uma mensagem importante. Os autores mostram que, mesmo nos Estados Unidos, a relação com o poder sempre foi problemática. Líderes fazem diferença. Por isso, escolher bem é essencial. Quando não for o caso, a última palavra será — sempre — do conjunto da sociedade. Até contra o homem mais poderoso do planeta.
Publicado em VEJA de 24 de janeiro de 2018, edição nº 2566