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Sou um sobrevivente

Eneas Espinoza, de 45 anos, chileno que, na infância, foi vítima de abuso em colégio católico de Santiago

Por Eneas Espinoza
Atualizado em 25 Maio 2018, 06h00 - Publicado em 25 Maio 2018, 06h00

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Pertenço a uma família muito humilde, de um bairro pobre de Santiago do Chile. Custou muitíssimo aos meus pais juntar dinheiro para que eu entrasse no colégio Instituto Alonso de Ercilla. Era uma instituição privada, até hoje muito cara. Aos 5 anos, fui até lá pela primeira vez para fazer o exame de admissão. O irmão marista Adolfo Fuentes me levou sozinho para uma sala e acariciou meu cabelo. Ele foi muito carinhoso comigo. Eu não o conhecia, e de alguma maneira aquilo me incomodou.

Lá dentro, a disciplina era quase militar. Tratavam a mim e aos meus colegas de uma maneira selvagem, violenta, agressiva. Os professores nos insultavam em classe, nos tratavam muito mal. Havia muito castigo físico. Às vezes eles nos mandavam para o centro do pátio, debaixo do sol de 30 graus do meio-dia. Era preciso ficar quieto, como um pequeno soldado. Esse tipo de castigo era muito comum. Quando estava com os alunos, Adolfo era uma pessoa muito rigorosa, muito dura. Ao mesmo tempo, com alguns, ele era mais carinhoso. Na visão dos demais, esses eram os privilegiados, os preferidos. No meu caso, era assim porque ele abusava de mim em segredo.

O irmão Adolfo ia me buscar na sala de aula. Ele me tirava da classe com alguma desculpa, como a de que eu precisava fazer prova de leitura. Quando ficava sozinho comigo, abusava de mim. Fazia sexo oral e mexia em mim. Isso se repetiu durante vários anos. Fui abusado no colégio e depois, em atividades de escoteiros em que ele era chefe.

Adolfo, quando cometia esse tipo de delito contra mim, sempre buscava alguma maneira religiosa de se justificar. Ele falava para mim que aquela era uma situação de graça divina, um sacrifício que estávamos fazendo para Deus. Dizia que eu era um escolhido. Na minha família, na minha casa, ele era considerado um santo. Aproximou-se muito de meus pais. Convenceu minha mãe a ir ao colégio para atuar na catequese, ajudar a preparar os meninos para a primeira comunhão. Ela, então, começou a trabalhar no colégio como voluntária. Estava sempre muito próxima do irmão Adolfo. Em casa, sempre se falava dele. Das coisas belas e maravilhosas que ele fazia.

Eu não podia contar à minha família o que acontecia. Primeiro, porque pensava que ela não iria acreditar. Segundo, porque tinha muito medo de perder a vaga no colégio, perder a oportunidade de estar ali e tudo o que isso significava para a minha família. Eles queriam que eu tivesse um futuro melhor e recebesse os valores católicos.

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Já adulto, quando comecei a contar minha história, eu estava sozinho. Depois, apareceram outros trinta ex-estudantes que também foram molestados pelos maristas. Cada um de nós percebeu que não era vítima de um caso isolado. Mais de dez religiosos foram citados. Em janeiro de 2018, apresentamos um processo na Justiça chilena. Os religiosos tinham essas inclinações e nos atacavam. Eu fui abusado por outros dois irmãos. Eles se organizavam para cometer esses delitos. Trocavam informações entre si sobre quais meninos eram mais vulneráveis e podiam ser atacados. Também construíram todo um esquema para impedir que outras pessoas soubessem dos abusos. Alguns desses maristas já morreram. Outros continuam na congregação.

Temos de contar nossa história para evitar que outros meninos passem por isso. Também queremos que a Igreja Católica investigue os casos com seriedade. O recente pedido de renúncia dos bispos chilenos me pareceu uma defesa em bloco, uma maneira de evitar assumir a responsabilidade e jogar nas mãos do papa a missão de fazer algo a respeito. Sou um sobrevivente. Parte do meu processo de cura é trabalhar para que outros meninos não sofram o que eu sofri.

Depoimento dado a Thais Navarro

Publicado em VEJA de 30 de maio de 2018, edição nº 2584

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