Assine VEJA por R$2,00/semana
Continua após publicidade

Saída sustentável

Autora de livros barulhentos, colunista canadense diz que a única alternativa para salvar o planeta é a adoção de uma espécie de anticapitalismo ecológico

Apresentado por Atualizado em 16 fev 2018, 06h00 - Publicado em 16 fev 2018, 06h00

Nos cinco livros que já publicou, a jornalista canadense Naomi Klein, de 47 anos, faz críticas ácidas ao capitalismo e, em especial, ao que julga ser o poder abusivo das marcas, a cultura do consumo e os impactos socioambientais. Em seu maior best-seller, Isso Muda Tudo: Capitalismo x Clima (2014), traduzido para 25 idiomas, mas ainda inédito no Brasil, ela diz que o neoliberalismo impede as reformas necessárias para conter o aquecimento global. Já em sua última obra, Não Basta Dizer Não, que chegou às livrarias americanas em junho e ao Brasil em novembro, pela Record, Naomi argumenta que Donald Trump se apoiou em sua marca pessoal, calcada no discurso do ódio, para se eleger presidente dos EUA. Como se vê, a jornalista, que escreve para veículos como os americanos The Intercept e The New York Times, não é de meias palavras. Mas, mesmo diante de cenários que considera desencorajadores, ela sustenta que há esperança — implantando-se o que poderia ser chamado de “ecossocialismo”, modelo econômico e político que seria capaz de corrigir desigualdades e proteger o planeta. Por telefone, Naomi concedeu a seguinte entrevista a VEJA.

Por que a senhora, em seu recente livro, afirma que dizer “não” é insuficiente para que se consiga mudar o cenário global? Quando comecei a escrever Não Basta Dizer Não, estava confirmada a vitória de Donald Trump, por isso se formava um quadro de oposição composto de uma faixa da sociedade. Porém, minha preocupação — que após a eleição se provou justificada — era que uma política puramente oposicionista a figuras e agendas perigosas seria insuficiente para conter o surgimento da onda radical. Isso porque é preciso apresentar também soluções para as muitas pessoas que estão sofrendo — e que, mais que mera oposição, esperam propostas concretas para melhorar sua vida. Esse foi o erro de Hillary Clinton. Na campanha de 2016, ela levantou o “não” ao rival, sem inspirar os eleitores a votar. Já Trump soube se vender. Friso que ele nem precisou conquistar uma massa de pessoas para se eleger.

Como ele se elegeu então? Trump era derrotável. Por isso, digo que foram os democratas que perderam, com Hillary, ao adotar uma tática equivocada. A consequência é que 90 milhões de americanos nem foram às urnas, o que é um vexame. Poucos eleitores democratas se propuseram a sair de casa para votar em Hillary, pois não estavam animados com ela. Assim, o resultado foi mais uma derrota de Hillary que uma vitória republicana.

Trump conseguirá governar com eficiência sem o apoio de tantos americanos? A verdade é que ele não recebe o devido crédito. Sim, Trump ainda não teve uma vitória arrebatadora no cargo, a não ser, talvez, a aprovação do pacote de impostos que propôs, com incentivos monstruosos à indústria da energia suja. Só que, além disso, ele tem agido em áreas nas quais não precisa de aprovação no Congresso. Por exemplo, desregulou questões ambientais fundamentais ao sair do Acordo de Paris (que determinou metas sustentáveis no âmbito da ONU) e com a permissão da exploração de petróleo em novas áreas dos Estados Unidos. Até o fim do mandato, Trump certamente causará mais estragos.

Nas eleições de 2018, o Brasil também deve contar com um candidato da direita extremista, o deputado federal Jair Bolsonaro. Essa é uma tendência global? É possível quebrar essa onda de extremismo. Do ponto de vista político, o mundo está muito volátil. Os cenários estão se transformando depressa na esquerda e na direita, e o centro entrou em colapso. Isso não quer dizer que um candidato com estilo similar ao de Trump vá necessariamente ganhar uma eleição no Brasil, por exemplo. O certo é que a população não aceita mais o status quo. Por isso, ainda aposto que uma esquerda equilibrada, com visão corajosa e credibilidade, tem chance de ganhar eleições e tirar países, como os Estados Unidos e o Brasil, da direção radical para a qual caminham hoje.

Há lições a ser aprendidas diante desse cenário? Sim, a de que classes tradicionais, e incluo aí a imprensa, que acham que sabem de tudo, que preveem tudo, estão errando em suas apostas. Existe o problema persistente de subestimarmos figuras como Trump, justamente por acharmos que falas extremistas como a dele nunca ganhariam uma eleição. É nisso que reside a maior força desses políticos. Não podemos subestimá-los, nem subestimar o poder de showman que eles têm — isso porque, como o entretenimento em massa tem colonizado a humanidade, tendemos a ficar obcecados pelas fórmulas propostas por esse tipo de cultura.

Continua após a publicidade

Quais os limites do impacto do show­man na política? O showman, fenômeno típico da cultura pop e capitalista, quando aplicado à política pode ser muito eficaz. O papel da mídia, nesse contexto, seria resistir à tentação de ir para onde estão os cliques, a audiência massificada. Pois foi exatamente o comportamento da busca por cliques que deu a Trump uma vantagem brutal na eleição presidencial. Como profissional de mídia que também sou, penso que é preciso criticar e cobrar essas figuras.

A senhora acredita que esses personagens são ignorados pela crítica? O problema é que a neoliberalização da maneira de pensar a política acabou criando centenas de movimentos contrários aos extremistas — e, muitas vezes, conflitantes — sem levantar uma bandeira única, com uma causa específica. Há ONGs de reivindicações LGBT, outras focadas na desigualdade econômica, outras que defendem o feminismo. Em vez de trabalharem juntas, para fazer imperar um pensamento de aceitação, essas organizações acabam disputando entre si os recursos e o reconhecimento público para suas marcas. Assim, todas saem desgastadas. Vivemos um momento no qual temos de compreender como todas essas demandas estão conectadas. Quando entendermos que todas estão interligadas, que são uma só, aí sim será possível realmente ganhar a atenção do outro, da audiência.

Como promover essa conexão? Por meio da compreensão de que vivemos todos no mesmo planeta, com as mesmas pessoas, e que tanto a Terra quanto as pessoas estão sendo destruídas por um sistema econômico e político. A mudança que precisa acontecer não é bem política, e sim na maneira de pensar. É essencial implementar a ideia de que ninguém é descartável, assim como nenhum lugar do planeta é descartável. Isso, sim, iria diretamente contra o posicionamento de extremistas como Trump, para quem o mundo é descartável. Aliás, é uma posição que combina bem com sua caricatura, a de um sujeito que julgava mulheres em concursos de beleza, tratando-as como pedaços de carne, e as via nuas sem a permissão delas, como se fossem sua propriedade.

O que sustenta o discurso de ódio a minorias? Eu diria que há campanhas concebidas deliberadamente para incentivar o ódio. O racismo e o machismo só crescem porque são nutridos dessa forma. Criou-se uma indústria, em grande medida apoiada pela mídia de direita, baseada na noção de que é preciso dividir as pessoas, colocando-­as umas contra as outras. Por que essa estratégia? Porque a realidade é que hoje os cidadãos querem uma mudança ampla, pois se mostram infelizes com o status quo. Por outro lado, há uma elite global temerosa que acha que é preciso direcionar o ódio aos mais vulneráveis antes que ele chegue até ela. Para tanto, essa elite alimenta o ódio da população, de maneira que as pessoas se voltem umas contra as outras, esquecendo de criticar os privilegiados, que continuam com seus benefícios exacerbados.

Não é uma análise excessivamente conspiratória e fatalista? O fato é que nosso sistema econômico atual não consegue resolver questões como a desigualdade social e a crise ambiental, resultante de mudanças climáticas provocadas pelas ações humanas. Incluo nessa conta não só os radicais como Trump, mas também políticos considerados progressistas. O que estou dizendo vale tanto para a direita quanto para a esquerda. Ninguém tem exibido políticas que realmente enfrentem esses problemas. Isso ocorre porque estamos presos a uma lógica econômica que impede investimentos, na esfera pública, capazes de viabilizar a transição dos recursos fósseis para a energia limpa. A atual leva de políticos não saberia nem por onde começar para promover uma real transformação nesse sentido.

Continua após a publicidade

E por onde se deve começar? O sistema teria de mudar tanto que deixaria de ser o capitalismo tal qual o conhecemos. Penso num tipo de ecossocialismo. Ainda não há um bom exemplo disso, já que a maioria dos governos socialistas que chegaram a existir foi fundamentalmente extrativista. Só que temos alguns exemplos de iniciativas locais que servem de inspiração. É o caso da Dinamarca, que adotou uma política exemplar de energia renovável, taxando a indústria dos combustíveis fósseis, a ponto de eles deixarem de ser financeiramente viáveis, enquanto apoia os investimentos em alternativas solares e eólicas. É desse tipo de coragem que o planeta está precisando agora.

Isso não seria possível no capitalismo tal qual o conhecemos? Quando se pensa em termos globais, não. Do ponto de vista social, por exemplo, quando Trump prometeu mais empregos a americanos, na campanha de 2016, a verdade é que ele não pensava em vagas qualificadas. Se fosse assim, como iria competir com países como a China, que usa trabalhadores em condições análogas à da escravidão para produzir os bens de consumo? Do modo como está, nosso sistema protege essa lógica. Já nas questões ambientais, não adianta só falarmos de metas globais se não existem punições. Necessitamos de um sistema que permita penalidades com aplicação mundial a quem não se adequar aos objetivos sustentáveis.

A corrupção é um fator relevante nesse campo? A corrupção se tornou corporativa no atual modelo econômico. As regras contra a corrupção foram se flexibilizando tanto que, no fim, legalizou-se um caso como o do escândalo dos Paradise Papers, no qual representantes da elite global foram flagrados colocando trilhões de dólares em paraísos fiscais, e tudo dentro da lei. Atualmente está legalizada a influência de corporações em governos. Afinal, Trump tem como secretário de Estado o ex-CEO da petroleira Exxon. No nosso sistema, nada disso é ilegal, justamente porque foi com medidas assim que se formou a base na qual se desenvolveu o capitalismo.

Publicado em VEJA de 21 de fevereiro de 2018, edição nº 2570

Publicidade

Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

Domine o fato. Confie na fonte.

10 grandes marcas em uma única assinatura digital

MELHOR
OFERTA

Digital Completo
Digital Completo

Acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de R$ 2,00/semana*

ou
Impressa + Digital
Impressa + Digital

Receba Veja impressa e tenha acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de R$ 39,90/mês

*Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
*Pagamento único anual de R$96, equivalente a R$2 por semana.

PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
Fechar

Não vá embora sem ler essa matéria!
Assista um anúncio e leia grátis
CLIQUE AQUI.