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Por um mundo mais global

Trump avançou contra os imigrantes e as fronteiras. Mas a reação, que mal começou, já se espalhou pelo mundo

Por Duda Teixeira Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 22 dez 2017, 06h00 - Publicado em 22 dez 2017, 06h00

“Não creio que haja país no mundo em que, guardada a proporção com a população, encontremos tão poucos ignorantes quanto na América”, escreveu o pensador e viajante francês Alexis de Tocqueville (1805-1859) em seu celebrado livro Democracia na América. Em 1831, ele ficou nove meses perambulando pelos Estados Unidos, país fundado seis décadas antes. Seu relato atraiu os olhares do mundo para os americanos, que passaram a ser vistos como exemplo a ser seguido. Havia liberdade de imprensa, de associação e de comércio. “Não há país em que as associações sejam mais necessárias, para impedir o despotismo dos partidos ou a arbitrariedade do príncipe, do que aquele em que o estado social é democrático”, concluiu Tocqueville. A Constituição, assinada em 1789, já estabelecia a separação dos três poderes, o Executivo, o Legislativo e o Judiciário. Além disso, havia certa igualdade no ar. Sua natureza era de ordem não apenas econômica, mas também intelectual. “A instrução primária está ao alcance de todos”, escreveu o francês.

Pois eis que, em janeiro de 2017, o bilionário Donald Trump assumiu a Presidência dos Estados Unidos. De supetão, o país que era admirado e tinha um presidente negro, inteligente e bem articulado passou a ser visto como uma ameaça que poderia deflagrar guerras desnecessárias e solapar outras democracias na Europa e na América Latina. Se Tocqueville ficou extasiado ao constatar como uma nação de imigrantes supria a todos com posses e com inteligência, para Trump os americanos de verdade haviam sido roubados pelos estrangeiros, fossem eles imigrantes ou moradores de outros países. A globalização dos mercados, que vinha sendo apoiada tanto pelo Partido Democrata como pelo Republicano, transformou-se em um fenômeno indesejável. Quanto à separação de poderes, nenhum respeito foi demonstrado pelo novo presidente. Membros do Congresso e do Judiciário passaram a ser criticados em mensagens no Twitter, que se tornou uma plataforma de ataques contra os inimigos.

O ano de 2017, porém, chegou ao fim sem que as previsões mais apocalípticas em torno de Trump tenham se cumprido. Outras democracias ocidentais também resistiram muito bem ao avanço da direita radical, xenófoba e protecionista. Nas eleições que aconteceram na Europa, políticos populistas que simpatizavam com Trump e o elogiavam abertamente não ganharam a disputa em seus países. Em vários deles, os sistemas eleitorais e políticos funcionaram como obstáculo. Trump fora eleito em 2016 no colégio eleitoral, com uma quantidade de votos menor que a da adversária Hillary Clinton, mas vencendo em estados-chave. Os sistemas políticos europeus são diferentes. Em maio, na França, Marine Le Pen, da Frente  Nacional, foi derrotada no segundo turno (leia na pág. 71). Na Holanda, Geert Wilders e seu Partido da Liberdade conseguiram apenas uma minoria no Congresso. Na Alemanha, o partido Alternativa para a Alemanha entrou, pela primeira vez, no Parlamento, mas ficou de fora da coalizão que governará. “A onda populista, se é que ela existiu, perdeu força com a drástica redução no fluxo de refugiados e com a melhora da economia mundial. Tudo isso esvaziou a pressão que existia antes”, diz o embaixador Rubens Ricupero. A economia da União Europeia deve crescer 2,4% neste ano. A dos Estados Unidos, 2,1%. Para países desenvolvidos, são bons números. O total de pessoas que atravessaram o Mar Mediterrâneo para chegar à Europa neste ano foi de 160 000, menos da metade do registrado em 2016 e uma fração do 1 milhão que realizou a viagem em 2015. A fim de reduzir a leva de imigrantes, a União Europeia fez um acordo para devolver à Turquia os refugiados que haviam passado pelo território desse país.

Desgovernado – Trump ao volante de um caminhão, na Casa Branca: depois da arrancada, ele perdeu velocidade (Jim Watson/AFP)

Embora as ameaças de fechar todas as fronteiras e de expulsar imigrantes de forma radical não tenham se concretizado neste ano, 2018 não transcorrerá sem riscos. Com a retirada americana das grandes decisões mundiais, Rússia e China estão preenchendo os espaços políticos e econômicos deixados no Oriente Médio, na Ásia, na América Latina e na África. Esses dois países, contudo, não nutrem nenhum apreço pelos direitos humanos. Eles vão estender suas áreas de influência, mas sem exigir contrapartidas no tocante ao respeito às democracias. Trump ainda pode conseguir no Congresso a verba para erguer um muro na fronteira com o México e causar mais problemas. As bravatas do americano, que afirmou que é o México que terá de arcar com os custos da obra, indignaram a população mexicana, que achou apática a resposta do presidente Enrique Peña Nieto, do Partido Revolucionário Institucional (PRI). A contenda internacional acabou insuflando o apoio ao candidato de extrema esquerda Andrés Manuel López Obrador. Populista e nacionalista, ele tentará pela terceira vez a Presidência. Para ele, Peña Nieto vendeu o país aos americanos. Assim como Trump, Obrador fala em alterar o Nafta, o tratado de livre­-comércio que reduziu as barreiras alfandegárias entre os dois países e o Canadá. Cauteloso, ele diz que as negociações só devem começar após a eleição presidencial de julho. A estratégia tem dado certo. Nas pesquisas de intenção de voto, Obrador está à frente, com 31% das preferências.

A América Latina penou menos com os fenômenos que pavimentaram a ascensão do populismo nos Estados Unidos e na Europa. A vinda de imigrantes e os ataques terroristas não foram temas sensíveis como no mundo desenvolvido. Os fatores que mais atrapalharam a política latina foram o preço baixo das commodities, a corrupção e o crescimento parco das economias. Como resultado, o apoio à democracia em toda a região foi o menor dos últimos quinze anos, segundo o instituto de pesquisas Latinobarómetro, do Chile. Os menos satisfeitos com essa forma de governo são os mexicanos (38% apoiam) e os brasileiros (43%). Essa desilusão ainda não afetou as urnas. Na América Latina, não há partidos nem candidatos que falem abertamente contra os imigrantes — o que é um ótimo sinal. Presidentes avessos ao populismo e à concentração de poder saíram-se vitoriosos ao longo do ano. Na Argentina, onde o peronismo e o culto personalista sempre predominaram, a população votou nas eleições legislativas nos candidatos peronistas menos radicais e em aliados do presidente Mauricio Macri, um antimessiânico que nem sequer apareceu nos cartazes da campanha eleitoral. No Equador, o cadeirante Lenín Moreno começou seu mandato de presidente em maio e comprou briga com seu antecessor, o populista Rafael Correa, ao abrir um canal com a oposição e prometer investigar denúncias de corrupção. É na Venezuela que o apoio à democracia é maior atualmente. Famintos e perseguidos pelas forças a mando do ditador Nicolás Maduro, quase 80% dos venezuelanos acreditam que a democracia é o melhor sistema de governo. Somente 22% deles declaram estar satisfeitos com a atual situação. Para o ano que vem, Maduro confirmou que vai celebrar eleições presidenciais, algo que não muda em nada a situação, já que ele não tolera a existência de adversários. Em 2018, a região terá eleições também na Colômbia, no Brasil, no Paraguai e na Costa Rica. Em todas elas, candidatos populistas podem ser limados no segundo turno. A exceção à regra é o México, onde não existe disputa entre os dois mais votados. Nos Estados Unidos, que terão eleições de meio de mandato em novembro, os democratas estão animados para retomar o controle do Senado, pois apenas um assento dá a maioria aos republicanos. Não será uma missão fácil, uma vez que os democratas precisarão disputar 25 das cadeiras que possuem atualmente, enquanto os republicanos só terão dez em jogo. Na Rússia, o presidente Vladimir Putin deve assegurar mais um mandato em março, às vésperas da Copa do Mundo, graças ao controle que exerce sobre a imprensa e a sociedade. Para valorizar a democracia, muitas vezes, infelizmente, é preciso provar o seu contrário.

Publicado em VEJA de 27 de dezembro de 2017, edição nº 2562

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