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Ponto fora da curva

Quem mudou o rumo da diplomacia americana foi Barack Obama, que se aproximou de Cuba e Irã e viabilizou o acordo climático. Trump fala muito mais do que age

Por Rubens Ricupero*
Atualizado em 31 jan 2018, 16h32 - Publicado em 25 jan 2018, 06h00

O impacto efetivo do primeiro ano do governo de Donald Trump se manifesta de modo mais nítido na política interna que na internacional. O Executivo está usando seu poder de agir para mudar a cara dos Estados Unidos, apesar dos atrasos oriundos da polarização do Congresso. Inexoravelmente, avança o desmantelamento da herança do ex-presidente Barack Obama no abandono sistemático da proteção ao meio ambiente, na rejeição aos refugiados e imigrantes, na reforma tributária em favor das grandes fortunas, na liquidação gradual do sistema público de saúde, na nomeação de dezenas de conservadores extremados como juízes federais, na aceitação tácita do racismo e da intolerância.

Em contraste, na área externa, Trump não conseguiu definir uma política exterior coerente e fala mais do que age. Em vez de decisões e ações, contentou-se com tuítes e ameaças vazias incapazes de alterar as realidades mundiais. Ao contrário do que prometera fazer logo no primeiro dia de governo, o presidente não declarou a China manipuladora de moeda nem aplicou tarifa de 45% sobre importações chinesas. Ele não rasgou o acordo do Nafta, retratou-se da afirmação de que a Otan é obsoleta, não voltou atrás no reatamento com Cuba, não invadiu a Venezuela e ainda não anulou o acordo nuclear com o Irã. Tampouco desencadeou “fogo e fúria” sobre a Coreia do Norte.

A indignação causada pelas palavras ultrajantes de Trump disfarça a pouca substância das decisões concretas. Nada que se compare com a catástrofe estratégica da invasão do Iraque desencadeada por George W. Bush, que produziu consequências incalculavelmente mais graves. A oficialização da tortura, as prisões de Guantánamo e de Abu Ghraib e o envolvimento em dois conflitos intermináveis no Afeganistão e no Iraque causaram danos mais devastadores e perduráveis à reputação e à liderança dos Estados Unidos que qualquer medida do atual governo.

Antes de Trump, Bush filho já havia destroçado o prestígio e o soft power dos Estados Unidos no mundo. A reabilitação da autoridade moral americana é recente e se deve a Obama. No respeito que reconquistou para o país, ele é um ponto fora da curva entre dois desastres. Para isso, afastou-se do que havia sido durante décadas a política relativa a Cuba. Em aquecimento global, o entendimento com a China e a ação decisiva para viabilizar o Acordo de Paris contrastaram com o governo Bush e a maioria do Congresso. O recurso à abordagem plurilateral na negociação do acordo nuclear com o Irã também teve de vencer forte resistência do Congresso e do establishment oficial.

As principais iniciativas de Obama se afastam mais da linha diplomática tradicional que a maioria dos lances da política exterior de Trump. Alguns dos lances do atual presidente chocam pela violência verbal. Em essência, porém, guardam continuidade com tendências crescentes de setores da sociedade americana. Apesar de parecerem inéditos, seus lances representam a expressão mais radical da deriva para o isolacionismo e o egoísmo nacionalista.

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O comércio mundial é um exemplo. Em termos efetivos, a única ruptura de verdade foi a rejeição do TPP, o acordo de livre-comércio dos países do Pacífico, que ainda não tinha sido ratificado. Fora isso, muito do que foi anunciado não se concretizou. Não se fala mais em impor tarifa de 35% a produtos fabricados por empresas americanas no exterior importados pelos Estados Unidos. As negociações da Organização Mundial de Comércio (OMC) estão praticamente mortas, mas quem as enterrou foi o governo Bush, desde pelo menos 2008. A atitude foi mantida por Obama. O veto à reeleição de um juiz coreano do sistema de solução de litígios da OMC e a paralisia na eleição de novos juízes datam do governo passado, não do atual.

O mesmo ocorre com a recusa de convenções internacionais. Desde a ratificação do acordo contra crimes cibernéticos, há doze anos, o Senado americano não aprova nenhum tratado. A lista de tratados que os Estados Unidos se recusaram a assinar ou dos quais se retiraram é impressionante: a Convenção do Direito do Mar, a da Biodiversidade, o Tratado de Proibição Completa dos Testes Nucleares e o do Tribunal Penal Internacional. Na Convenção sobre Direitos das Crianças, assinada por todos os membros da ONU, apenas os Estados Unidos ficaram de fora. Na Convenção sobre Pessoas com Deficiência, inspirada na lei americana, 38 senadores, todos republicanos, impediram a aprovação.

Esses fatos mostram que o problema não se resume a Trump, mas consiste em uma tendência mais disseminada, que não desaparecerá com ele. Com três anos de mandato pela frente, é certo que muita coisa ainda pode dar errado. Até agora, porém, nem tudo piorou. A relação com o maior rival, a China, até melhorou depois da visita triunfal do presidente americano a Pequim. Na linha do realismo aconselhada por Henry Kissinger, Trump buscou a cooperação chinesa para resolver o desafio norte-coreano. Ele pôs de lado a política de confronto para tentar limitar a projeção do poder chinês no Mar do Sul da China.

À luz do que fez nesse começo de mandato, é pouco provável que Trump cause dano irreparável ao planeta por um súbito gesto tresloucado como um ataque nuclear contra a Coreia do Norte. Graças à organização do mundo num sistema baseado em regras negociadas e aceitas livremente por todos os países é que se evitou em quase 73 anos a repetição das duas guerras mundiais, que ensanguentaram o século XX. Nesse período, nunca mais se empregou a bomba atômica em populações civis. A Guerra Fria acabou sem sangue, o sistema das Nações Unidas teve flexibilidade para acomodar a ascensão da China e a conversão da União Soviética em Rússia. Seria um trágico retrocesso jogar fora um sistema que precisa ser atualizado e aperfeiçoado e voltar ao estado de “guerra de todos contra todos”. A visão implícita no discurso de Trump é que se deve buscar uma alternativa ao sistema baseado em leis, com os Estados Unidos acima de tudo, livres para impor seu interesse pela força.

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O dever de europeus, chineses, indianos e brasileiros é resistir ao que seria um recuo irreversível no processo civilizatório e no avanço da consciência moral da humanidade. Para um país como o Brasil, sem poder militar, que não é potência nuclear nem convencional, a resistência, a defesa do sistema baseado em leis, é mais que um dever, é um imperativo de autonomia e sobrevivência.

* É embaixador e autor do livro A Diplomacia na Construção do Brasil, 1750-2016 (Versal Editores)

Publicado em VEJA de 31 de janeiro de 2018, edição nº 2567

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