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Painel da catástrofe

Num trabalho sério, Leonardo Coutinho, de VEJA, desvenda os crimes do regime autoritário de Chávez — e só se excede quando se põe na posição de acusador

Por Joel Pinheiro da Fonseca
Atualizado em 16 mar 2018, 06h00 - Publicado em 16 mar 2018, 06h00
Hugo Chávez, O Espectro, de Leonardo Coutinho
(Vestígio; 240 páginas; 44,90 reais) (//Divulgação)

Fatos pontuais, por si sós, não contêm a história que consegue integrá-los como parte de uma mesma narrativa coerente. Juntar as peças e, com elas, explicar o que se passa ao nosso redor é um trabalho tão importante quanto coletar documentos, informações e dados novos. E é esse o grande mérito de Hugo Chávez, o Espectro, do jornalista de VEJA Leonardo Coutinho: reunir evidências dispersas pelo globo e contar em detalhes como se deu a rede clandestina de sustentação e promoção do chavismo, na Venezuela e no mundo. Ao fazê-lo, Coutinho mostra com clareza quão mergulhado no crime estava o governo de Hugo Chávez, e quão ridículos soam as declarações de amor à humanidade e os ideais igualitários que supostamente guiavam os líderes bolivarianos em sua guerra pelo poder.

Partindo de conversas que teve com Alberto Nisman, o procurador argentino que foi assassinado ao investigar as conexões do governo de seu país com o terrorismo iraniano, Coutinho nos conduz numa jornada que o levou a desvendar passo a passo os esquemas de corrupção, crime e assassinato que permitiram à Venezuela exercer, por baixo do pano, um papel tão marcante no plano global. Mesmo quem já tem críticas ao regime chavista sairá chocado com o grau da criminalidade que nele vigorou e ainda vigora.

Para Chávez, tudo o que ajudasse a desestabilizar o poder americano era bem-vindo. Para esse fim, ele buscou duas estratégias principais: o alinhamento com nações rivais dos Estados Unidos (especialmente o Irã) e a participação ativa do Estado no tráfico de drogas internacional. Coutinho é bastante detalhista ao relatar nomes, datas e acordos que formaram cada passo da consolidação da Venezuela como um jogador central no envio de cocaína para o resto do mundo (num esquema que envolveu até mesmo sobrinhos do atual presidente, Nicolás Maduro, hoje presos nos Estados Unidos). Longe de ser mera atividade criminosa mesquinha, o tráfico de cocaína era considerado um instrumento da luta contra o imperialismo, ao prejudicar a sociedade americana internamente e ao gastar seus recursos no combate às drogas.

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Na outra ponta da estratégia, Mahmoud Ahmadinejad — presidente do Irã de 2005 a 2013 — foi aliado preferencial de Chávez, visitando-o em 2007 para pedir ajuda no envio clandestino de tecnologia nuclear argentina ao Irã. Foi o início de uma grande amizade, na qual a Venezuela serviria de intermediário entre Teerã e Buenos Aires — cujas relações foram severamente danificadas pelos atentados terroristas contra alvos judaicos na Argentina nos anos 90.

O Brasil não poderia ficar de fora da festa. Lula considerava a manutenção do poder chavista nas eleições de 2012 um momento decisivo para a esquerda latino-americana. Ofereceu a expertise brasileira em campanhas políticas, na figura de João Santana, bem como doações generosas via Odebrecht e Andrade Gutierrez. A Petrobras também participou da farra bolivariana: a Refinaria de Abreu e Lima foi um presente do governo brasileiro ao regime Chávez, um prejuízo que o Brasil assumiu em nome da solidariedade com o socialismo do século XXI.

A atuação proativa da Venezuela só foi possível graças ao petróleo que ela tem em abundância e cujo preço disparou nos anos 2000. Tudo era pago com o dinheiro do petróleo: política social interna, favores e doações a países alinhados, televisão estatal para fazer propaganda do regime. Mas, a partir de 2014, o preço do petróleo despencou. Chávez morrera um ano antes, deixando Maduro em seu lugar e nenhuma poupança ou investimento para enfrentar tempos difíceis. Pelo contrário, a economia venezuelana — estatizada, burocratizada, endividada e corrupta — já se encontrava em estado precário antes da queda do petróleo. O resultado foi o colapso humanitário a que assistimos hoje. Mesmo assim, Maduro finalizou o trabalho político de seu antecessor: dissolveu todas as instituições nacionais que poderiam refrear impulsos totalitários do Poder Executivo. Com o Judiciário subserviente e o Legislativo chutado para escanteio com a proposta de uma nova Constituinte, retirou qualquer semblante democrático de seu exercício do poder.

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As histórias que o livro conta, com boa documentação, bastam para que qualquer leitor razoável entenda o desastre do regime de Chávez e Maduro. Nenhum juízo do autor seria necessário — e, por isso, quando ele se põe na posição de acusador, vai longe demais. Logo no início, por exemplo, Coutinho opina que o que movia Chávez acima de tudo era a vaidade. Ao contrário dos laços com o que há de pior no submundo global, a psicologia de Chávez não foi objeto de nenhuma investigação detalhada no livro. A consideração sobre sua vaidade aparece como opinião preconcebida do autor, e só serve para predispor o leitor: a favor de Coutinho se já for antipático ao chavismo; e contra se for bolivariano. Felizmente, qualquer predisposição ou suspeita é desarmada pelo sério trabalho de investigação.

O Brasil, argumenta Coutinho nas últimas páginas, por pouco não seguiu o mesmo caminho da Venezuela. Quem nos salvou foi o fisiologismo do MDB. A corrupção comum, essa que nos enche de indignação e chega até mesmo a insuflar instintos revolucionários, fica parecendo um jogo inocente se comparada aos assassinatos, ao narcotráfico e ao terrorismo de que os verdadeiros revolucionários são capazes por baixo de sua capa de intenções puras.

Publicado em VEJA de 21 de março de 2018, edição nº 2574

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