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O que Picasso escondeu

O genial pintor espanhol já indicara a existência de algo oculto sob suas telas. Descobriu-se que era literal: havia outras pinturas por trás das obras

Por Jennifer Ann Thomas Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 2 mar 2018, 06h00 - Publicado em 2 mar 2018, 06h00

Pablo Picasso era tão irônico, tão ácido, que quase tudo o que dizia era tido como uma boutade, mera provocação de um sujeito mercurial. Em 1957, já com 76 anos, ele começou a espalhar uma informação: por trás de algumas de suas telas mais conhecidas haveria quadros ocultos, nas camadas inferiores. Se era verdade ou metáfora das infindáveis demãos de sua arte irrequieta, não se sabia. Revelou-se, no último dia 17, que Picasso não estava brincando. Escondera, sim, propositadamente, parte de seu trabalho de nossos olhos. Pesquisadores da Galeria de Arte de Ontário, no Canadá, em parceria com três entidades americanas — Galeria de Arte Nacional, Universidade de Northwestern e Instituto de Arte de Chicago —, divulgaram uma descoberta fascinante: a obra-prima da fase azul do pintor, A Mulher Agachada (1902), do acervo canadense, oculta outro quadro, uma paisagem.

Pela análise da técnica e das cores utilizadas, os especialistas têm certeza de que não é uma obra de Picasso, essa que ficou por trás. O mais provável é que se trate de um desenho inspirado em um parque localizado em Barcelona, possivelmente de autoria de um aluno de alguma das academias de artes da cidade espanhola — e que deveria pertencer ao círculo social de Picasso, então um iniciante de 21 anos. De acordo com a historiadora de arte canadense Sandra Webster-Cook, da Galeria de Arte de Ontário, uma das pesquisadoras do estudo, não era incomum que artistas reutilizassem telas. “No caso de Picasso, contudo, mesmo nisso há alguns diferenciais em relação aos colegas”, ressaltou Sandra, em entrevista a VEJA. “Ele não fez como outros, que simplesmente jogavam tinta na pintura anterior, para depois pintar em cima.” Picasso agiu de modo diferente. No caso de A Mulher Agachada, nota-se que ele virou a tela de lado — a paisagem era horizontal; o novo quadro, com a figura feminina, vertical.

REVELAÇÃO – Com tecnologias de raio X e de análise da composição química, achou-se o quadro encoberto por A Mulher Agachada (Art Gallery of Ontario/VEJA)

Notou-se, ainda, que sobre a base original, a da paisagem, Picasso fez o esboço de uma mão segurando um disco e, sobre esse desenho, colocou seu resultado final, azulado. Verificou-se que a inclinação da cabeça da mulher retratada passou por alterações antes de o pintor ficar satisfeito com a obra. “Picasso desenhava rápido e numa tacada só”, diz Sandra. “Parecia não gostar das pinceladas iniciais, o que o levava a um longo e intenso processo criativo, que envolvia realizar diversas versões de uma pintura em apenas uma tela, como agora constatamos.” É a ciência ajudando a entender os caminhos de um gênio.

A explicação para a existência da pintura camuflada é menos glamourosa do que se poderia imaginar. Antes de alcançar a fama, antes de ganhar muito dinheiro, antes de Les Demoiselles d’Avignon (1907) e de Guernica (1937), imagens impregnadas na retina do nosso tempo, Picasso passou por maus bocados. Entre 1901 e 1904, quando tingia tudo de azul, na antessala do cubismo, quase não tinha dinheiro para comer, menos ainda para comprar telas para trabalhar, em Barcelona ou Paris, cidade que o acolhia com desconfiança. Eram escassos, portanto, os materiais à disposição. Não havia tintas, não havia pincéis, espátulas nem palhetas de cores. Uma das formas de economizar era utilizar telas descartadas ou mesmo, como no caso da revelação de agora, preenchidas com pinturas menos relevantes, ou desprezadas por seus autores.

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A mesma tática de reaproveitamento já foi identificada em outras obras de Picasso. Mas nunca como agora. Em Mulher Passando Roupa, de 1904, do Museu Guggenheim de Nova York, também fruto da fase azul, ele próprio se desfizera de uma pintura de que, supostamente, não gostara. Mulher Passando Roupa esconde um outro Picasso, a figura de um homem com espesso bigode. Os achados revelam que ele adotara o hábito de criar pinturas sobrepostas. Provavelmente, decepcionava-se com uma e, na sequência, traçava outra em cima.

Avanços tecnológicos têm permitido, nos últimos anos, descobrir mais sobre obras do passado, de um tempo em que não havia invenções como o YouTube, capazes de registrar cada passo dos artistas e das celebridades, num eterno reality show. Em 2014, o engenheiro francês Pascal Cotte usou uma série de luzes intensas e inofensivas às telas com fotografia de altíssima definição, além de processos de raio X, para mostrar que Dama com Arminho, quadro pintado entre 1489 e 1490 por Leonardo da Vinci, escondia três rascunhos anteriores do trabalho, sob a mesmíssima tela. Novos equipamentos de infravermelho e análise de elementos químicos, dos tipos aos quais Sandra e sua equipe recorreram para o estudo de A Mulher Agachada, levaram à conclusão de que sob Homem Velho em Traje Militar, de Rembrandt, há o retrato de outra pessoa, e que em Baco, de Caravaggio, existe um autorretrato. Até o próximo dia 11 também estará sendo submetida a estudos, com a utilização de ferramentas similares, a estupenda Moça com Brinco de Pérola, que deverá revelar o movimento dos pincéis do holandês Johannes Vermeer.

“Além de revelar mais do processo criativo do autor, esse tipo de pesquisa ajuda a compreender como a arte não é algo puramente instintivo, que há racionalidade e padronização nas decisões dos artistas que idolatramos”, disse a VEJA o químico americano John Delaney, especialista em análise de imagens da Galeria de Arte Nacional, que auxiliou no exame do quadro de Picasso. Há ainda um outro benefício: a ampliação do conhecimento em relação à conservação das pinturas, se estão sendo destruídas pela ação deletéria e inexorável do tempo, e em que ritmo. É informação fundamental para a boa manutenção de quadros nos museus de todo o mundo. Os recursos desenvolvidos sobretudo nos campos da medicina e da saúde para o diagnóstico de doenças e a realização de cirurgias são hoje essenciais para navegarmos na história da arte e desvendarmos mistérios do gênio artístico de séculos e séculos atrás. Dizia Picasso, numa daquelas suas pirraças intelectuais: “Se sabemos exatamente o que vamos fazer, para que fazê-lo?”. Agora sabemos, ao menos em parte, o que Picasso não sabia, ou escondia.

Com reportagem de Carla Monteiro


O exame da moça misteriosa

ENIGMA – Um mistério nunca será revelado: quem foi a modelo do quadro (Michel Degroot/The New York Times/Rijksmuseum/Reprodução)

Principal atração do Museu Mau­­ri­ts­huis, em Haia, na Holanda, o excepcional quadro Moça com Brinco de Pérola, do holandês Johannes Vermeer (1632-1675), estará em exibição de um modo inusitado até o dia 11 deste mês. Em vez de ocupar seu tradicional posto na parede do prédio, a “Mona Lisa do Norte”, seu simpático apelido, foi levada à ala do Quarto Dourado, ali no mesmo edifício, para passar por uma análise científica ao longo de duas semanas, aberta à visitação pública. Batizado de Moça sob o Holofote, o projeto pretende compreender a técnica adotada por Vermeer para chegar ao resultado final do retrato.

Em 1994, a pintura — um óleo sobre tela de 44,5 centímetros por 39 centímetros, uma pequena joia de 1665 — chegou a ser submetida a investigação semelhante, com raios X e fotografia por meio de radiação ultravioleta, em que se tentava descobrir os métodos aplicados nas pinceladas. Pouco se revelou, dado que uma exploração profunda poderia, naquela época, danificar o quadro. O plano parou aí, e o quadro retornou ao seu nobre lugar (em 2003 inspirou um filme que concorreu aos Oscar de arte, fotografia e figurino).

O avanço das tecnologias de restauração e diagnóstico, que hoje não demandam a retirada de camadas dos materiais usados na tela, permitirá o novo olhar agora celebrado. Os dados compilados serão digitalizados para uma futura recriação virtual da imagem. Disse o químico Joris Dik, da Universidade de Tecnologia de Delft, na Holanda: “Um dia teremos algo como um Google Earth da arte, no qual será possível clicar em diferentes camadas de uma pintura a fim de identificar elementos que levem a conclusões de como foi criada”. No caso de Moça com Brinco de Pérola, há um mistério que jamais será respondido pela ciência: quem foi, afinal, a delicada menina que inspirou o retrato?

Publicado em VEJA de 7 de março de 2018, edição nº 2572

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