O feitiço contra os feiticeiros
Delatores fazem comentários impróprios sobre ministros do STF, comprometem a Procuradoria da República e podem ter os benefícios cassados
Desde que decidiu tentar um acordo de delação premiada, o empresário Joesley Batista sabia que só teria êxito se conseguisse reunir evidências contra os personagens mais importantes da República ainda imunes às investigações da Lava-Jato. Com um gravador escondido no bolso, Joesley gravou o presidente Michel Temer recomendando que ele mantivesse suas boas relações financeiras clandestinas com o ex-presidente da Câmara dos Deputados Eduardo Cunha. Também gravou o senador Aécio Neves (PSDB) pedindo-lhe dinheiro e, sabe-se agora, autogravou-se conversando com um de seus executivos. Os dois primeiros áudios foram entregues ao Ministério Público, resultaram em uma denúncia de corrupção contra Temer, outra contra Aécio Neves, deram na prisão do ex-deputado Rodrigo Rocha Loures, filmado correndo com uma mala que continha 500 000 reais em propina. Em troca da colaboração, o empresário, que poderia passar até trinta anos na cadeia, ganhou imunidade total. O terceiro áudio, cujo conteúdo foi revelado pelo site de VEJA na terça-feira 5, pode pôr tudo isso a perder.
Não se sabe exatamente em que circunstâncias nem por quê, mas, em 17 de março, pouco mais de um mês antes de assinar o acordo de delação, Joesley Batista registrou, talvez involuntariamente, uma conversa sua com Ricardo Saud, diretor de relações institucionais da JBS. São quatro horas de diálogos em que ambos estão com voz pastosa, o que sugere que bebiam, e, em tom debochado, distribuem passagens autoincriminatórias, que vão da grosseria à bandalheira. Os dois delatores insinuam que contaram às autoridades apenas parte dos crimes que cometeram, falam sem meias palavras sobre a ajuda que estariam recebendo de um procurador da República, Marcelo Miller, que trabalhava com o procurador-geral Rodrigo Janot, e discutem estratégias para tentar envolver no escândalo ministros do Supremo Tribunal Federal (STF).
O áudio-bomba foi descoberto por acaso pela procuradora Maria Clara Noleto, segundo Janot, quando ela, a pedido dele, ouvia um conjunto de novas conversas enviadas pelos advogados da JBS. Os delatores, ao que parece, pensaram estar entregando uma prova complementar sobre um pagamento de propina ao presidente do Partido Progressista (PP), o senador Ciro Nogueira. Mas era muito mais do que isso. O arquivo estava identificado como “PIAUIRICARDO3”, mas seu conteúdo era mais comprometedor.
Desde que foi assinado, em maio, o acordo de delação premiada dos executivos da JBS foi alvo de críticas. A polêmica começou com a concessão da imunidade penal aos delatores e se estendeu à não muito clara participação do procurador Marcelo Miller no processo. Assessor direto de Janot nas investigações da Lava-Jato, Miller atuou nas negociações da delação dos executivos da JBS e, enquanto ainda estava executando a tarefa, deixou a Procuradoria para trabalhar justamente no escritório de advocacia que negociava o acordo de leniência da empresa.
Na autogravação, Ricardo Saud chama Marcelo Miller de “nosso chefe”, ressalta que o ex-procurador estaria “afinado” com eles, que seria o caminho para que pudessem obter facilidades junto a Janot e estava encarregado de “consertar” todas as informações que os delatores estariam dispostos a revelar. “Ele tá ficando meu amigo e tal…”, diz Saud. E completa reproduzindo o que teria ouvido do procurador: “ ‘Pode escrever o que você quiser aí, que eu conserto depois …’ ”. Em um trecho, Joesley chega a recomendar que eles precisavam estar “100% alinhados” com o procurador. “Nós somos a joia da coroa deles. O Marcelo já descobriu e falou com o Janot: ‘Ô Janot, temos o pessoal que vai dar todas as provas que precisamos’ e ele já entendeu isso”, relata o dono da JBS.
As suspeitas são de que Miller tenha atuado ao mesmo tempo como procurador da República e consultor da JBS, direcionando o teor dos depoimentos dos delatores ao gosto do Ministério Público, o que seria uma flagrante ilegalidade. Informado sobre o conteúdo da conversa, Janot convocou uma entrevista e anunciou que estava pedindo a abertura de uma investigação diante dos indícios de que Miller cometera advocacia administrativa e improbidade ao atuar dos dois lados do balcão. “Áudios com conteúdo grave, eu diria gravíssimo, foram obtidos pelo Ministério Público Federal. Tais áudios também contêm indícios, segundo esses dois colaboradores, de conduta em tese criminosa atribuída ao ex-procurador Marcelo Miller.” O ex-procurador nega as acusações. Em nota divulgada na quarta-feira, ele diz que não era o braço-direito de Janot, a quem não via desde outubro de 2016, e garante que nunca atuou como intermediário entre o grupo de Joesley e Janot. Se ficar comprovada sua dupla militância, porém, as investigações da Lava-Jato derivadas da delação da JBS poderão sofrer um baque — para o regozijo de uma penca de corruptos.
Ministros do STF, ouvidos por VEJA sob a condição de anonimato, afirmaram que há espaço para que provas pontuais sejam efetivamente anuladas pela Justiça. Ainda que uma das cláusulas da delação da JBS estabeleça que, em caso de rescisão do acordo, permanecerão “válidas todas as provas produzidas”, os magistrados avaliam que o ponto principal da discussão será saber se o ex-procurador Miller direcionou ou não a delação dos executivos. “Se ele negociou pelo Ministério Público Federal e pela defesa, induzindo determinadas condutas, essas provas podem, sim, ser anuladas”, disse um ministro. “Se o procurador fez só um coaching (treinamento) — ‘melhor assim que assado’ —, talvez não sejam anuladas as provas”, ponderou. “Se ficar provado, por exemplo, que as gravações feitas pelos empresários incriminando autoridades foram combinadas com a Procuradoria, temos uma ação controlada sem autorização judicial. Então a gravação é irregular, e o que derivar dela pode também ser considerado ilegal”, analisou outro integrante do STF. Caberá ao Supremo julgar caso a caso.
Há outras gravações que comprometem o procurador Miller. O gabinete do ministro Edson Fachin, relator da Lava-Jato, guarda sete áudios recuperados dos gravadores de Joesley, sendo que em um deles há referências indicando que Miller pode ter praticado crimes em benefício dos delatores. Nesse áudio, Joesley conversa com dois advogados e, de novo, cita a atuação do procurador. Apesar da possibilidade de o diálogo servir para comprovar as irregularidades praticadas pelo ex-procurador, Fachin considerou que se tratava de uma conversa entre advogados e cliente e que, por isso, ela deveria ser mantida em segredo.
Embora nada tenha que comprometa os ministros do STF, a autogravação da JBS acirrou os ânimos. Na primeira sessão plenária do STF após a revelação da conversa, o ministro Luiz Fux foi taxativo: “Deixo ao Ministério Público a opção de fazer com que esses participantes dessa cadeia criminosa que confessaram diversas corrupções passem do exílio nova-iorquino para o exílio da Papuda”. A presidente do STF, Cármen Lúcia, citada nas conversas como um dos integrantes do Supremo que teriam proximidade com a ex-presidente Dilma Rousseff, investigada, e com o ex-ministro da Justiça José Eduardo Cardozo, reagiu com dureza à menção de seu nome e de outros magistrados. No diálogo entre os delatores, Cardozo é apontado como uma pessoa que poderia ter ascendência sobre alguns ministros. Ela gravou um pronunciamento em que exige que sejam apuradas as insinuações contra a “dignidade” da corte e a “honorabilidade” dos ministros. Em nota, Joesley Batista e Ricardo Saud pediram desculpas pelo teor “desrespeitoso” e “vergonhoso” das conversas gravadas. “O que nós falamos não é verdade”, afirmaram. Sob a ameaça de perder os enormes benefícios que ganhou na delação, o pessoal da JBS agora fará o que puder para manter a integridade do acordo — mas isso parece cada vez mais difícil.
Publicado em VEJA de 13 de setembro de 2017, edição nº 2547